Sílvia Gomez saía de suas aulas com Antunes Fruto, quando estudava no Núcleo de Pesquisa Teatral do Sesc, em frangalhos. “Meu Deus, eu tenho que ortografar uma coisa muito perigosa! Porquê eu vou fazer? Era um momento de utopia, ele falava que teatro é fazer o impossível. Portanto não tem jeito, acabou.”
O professor, um dos principais diretores do teatro brasílio, era exigente. Cobrava que os estudantes fossem pontuais, consumissem o que era feito nas diferentes artes, estivessem atentos ao que acontecia no mundo e levassem seus textos a territórios inexplorados. Condenava a leitura dos manuais de roteiro e esperava encontrar singularidade na escrita de cada um.
“Isso que é dramaturgia!”, diz a autora, imitando o falar exaltado de Antunes, enquanto bate a xícara de moca vazia do repórter contra a sua. “É conflito, movimento. Um dramaturgo não tem amigos, tem que ser a pessoa mais corajosa, que fala as coisas na faceta.”
Gomez conversa com a Folha na sala de cenografia do CPT, a mesma onde, há 22 anos, foi escolhida para estudar escrita teatral com o diretor de “Macunaíma”, morto em 2019, aos 89. A escola fica no sétimo andejar do Sesc Consolação, morada do Teatro Anchieta, onde estreia a primeira temporada paulistana da peça “Lady Tempestade”, escrita por Gomez e estrelada por Andrea Beltrão.
Os ingressos para todas as datas esgotaram tão logo ficaram disponíveis. Mesmo as entradas reservadas para a compra física nas unidades do Sesc evaporaram, carregadas por filas entusiasmadas.
O texto, formado a partir dos diários da advogada Mércia Albuquerque, defensora de presos políticos durante a ditadura militar no Recife, é assombrado. Invoca, das páginas do documento, sua autora, transformada em protagonista, muito uma vez que perseguidos políticos, suas mães, os milicos, entre outros espectros.
Gomez descreve sua escrita uma vez que um “lúcido delírio”, que pesca no mundo, com as ferramentas da jornalista que ela também é, as peças para seus sonhos e pesadelos.
“O real invadiu muito a ficção. Me parece que ele está tão inflamado, que é uma vez que se você não pudesse moderar sua ingressão na arte”, diz Gomez. “Ao mesmo tempo, me interesso muito pelas obras que conseguem olhar para esse real e fissurá-lo, encontrar as porções de ficção e sigilo nele.”
Ao restaurar a figura da mulher que lutou contra as trevas de sua estação à sua maneira —uma vez que “Ainda Estou Cá” fez recentemente no cinema—, a peça responde também aos movimentos antidemocráticos atuais, à intolerância e às violações de direitos humanos. “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”, segundo uma fala da peça.
A dramaturga ralou para terminar a primeira versão de “Lady Tempestade”. Há passagens do quotidiano mormente duras, e havia dias nos quais, em seguida ler unicamente meia página, precisava suspender o dia de trabalho pela difícil digestão.
“Quando ela me relatou isso, eu propus que ela escrevesse sobre essa relação com o quotidiano”, diz sua tia, Yara de Novaes, diretora da peça e uma de suas grandes colaboradoras. Daí, surgiu a personagem fragmentada interpretada por Beltrão, que ora é chamada de A., a atriz, ora é M., Mércia.
Oriente é o primeiro trabalho de Beltrão com Novaes, mas a tradutor diz que há tempos paquerava a diretora para uma parceria. Quando Novaes sugeriu sua sobrinha para a dramaturgia, a veterana procurou outros textos de Gomez —e diz que gostou. “Ela é uma pessoa sagaz, sensível, enxurro de simplicidade e, ao mesmo tempo, sofisticada. Trabalha com desespero, mas não se leva a sério”, diz Beltrão.
Na puerícia, Gomez ia de Lavras, cidade no sul de Minas Gerais, a Belo Horizonte, aos finais de semana, para seguir os ensaios do grupo de teatro da mais velha, onde conheceu pela primeira vez as coxias.
Estudou jornalismo na Universidade Federalista de Minas Gerais e frequentou, em paralelo, um curso de atuação, quando decidiu que seu lugar não era no palco. “Mas foi muito bom, porque eu entendi o que é o corpo na cena e o que é um texto para ser falado.”
Quando veio para São Paulo, Gomez conciliou os estudos no CPT ao jornalismo. Trabalhou até 2018 na Editora Abril, onde passou pelas revistas Videogame, Morada Cláudia e Arquitetura & Construção.
Sua estreia nos palcos paulistanos foi em 2008, com “O Firmamento Cinco Minutos Antes da Tempestade”, dirigida por Eric Lenate, que estudava atuação no CPT. O colega foi quem, em 2015, inscreveu outra geração dela, “Mantenha Longe do Alcance do Bebê”, numa mostra do Núcleo Cultural São Paulo, em seguida muita insistência.
Ao contrapor uma mãe enfermeira, um pai ausente que retorna à morada e uma filha dopada com os psicotrópicos com os quais a mulher que a trouxe ao mundo tenta domar a vida, o texto já algumas obsessões, em um bom sentido, que povoam o conjunto da sua obra.
Era um texto em que ela não confiava —Antunes não tinha gostado do material. Mas foi ele quem rendeu a ela seu primeiro prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA. De lá para, escreveu algumas tantas peças, que nasceram de elementos inusitados.
Já “A Árvore”, que virou filme com a Alessandra Negrini, atriz também da versão para os palcos, começou a ser escrita quando, durante a pandemia, ela prendeu uma mecha de cabelo numa vegetal sem querer. Neste solilóquio, Gomez começa a folgar com algumas das estratégias que utilizará para racontar a história de “Lady Tempestade”.
A., sozinha em seu apartamento, fala com alguém que não é identificado. Ao se enroscar, enquanto limpa uma estante, numa “Mimosa pudica” —a vulga dormideira é chamada assim ali, por seu nome científico—, começa a se metamorfosear rumo ao reino vegetal, num fluxo verborrágico.
A um só tempo, ligeiro e nervosa, Gomez equilibra um carinho mineiro, mas o espanto a que dá vazão nos textos também está nas suas expressões. “O capitalismo virou essa besta-fera, você tem que estar muito vigilante para não ser absorvido”, afirma.
Além de ortografar, Gomez forma novos dramaturgos. A invitação de Antunes, deu cursos sobre a escrita para teatro no CPT em 2017 e 2018 e, desde logo, se dedica a passar para frente o que descobriu até cá.
Gomez tem quatro peças publicadas em livro —”A Árvore” e “Lady Tempestade”, que saíram pela Cobogó, e, num único volume da editora Javali, “Mantenha Fora do Alcance do Bebê” e “Neste Mundo Louco, Nesta Noite Rútilo”.
Além de “Lady Tempestade”, “A Árvore” faz turnê com Alessandra Negrini, e outras de suas peças serão encenados em breve por grupos fora do país. Mãe de um jovem de 16 anos, ela escreve agora sobre as agruras da juvenilidade nestes tempos, sem saber ainda qual será o resultado.