O voo tinha sido duro com o corpo que já lhe falhava. Era 19 de julho de 2005 e o produtor americano J Dilla, ou Jay Dee, enfim pisava no Brasil. Meses antes, ele tivera uma severa intoxicação nutrir em uma viagem à Europa. A exigência piorou seu estado de saúde já comprometido pelo lúpus. As roupas largas eram largas demais, até mesmo para um artista do hip-hop. Era sua primeira vez no país, porém, e Dilla saiu do hotel em São Paulo para fazer o que fazia de melhor —música.
Era ainda de manhã quando o produtor e seu parceiro músico e também produtor Madlib saíram em procura de uma loja de discos. Na rua Augusta, encontraram a Discomania. Tardaram um pouco a convencer o possuidor a mostrar a sala das relíquias, mas saíram exitosos.
Na sobreloja encontraram os discos que brilham porquê ouro para produtores, músicas que ganham novidade vida nas mãos de quem faz rap. Dilla sentou-se num tamborete entre as prateleiras e começou a folhear os discos.
“Eu saquei minha câmera, uma Fuji 645, e fiz uma, duas fotos,” conta Brian Cross, o B+. Fotógrafo de rap renomado, ele foi o arquiteto da vinda de Dilla ao Brasil. A teoria surgiu quando ele e Madlib foram convidados a vir ao país por ocasião da 1ª Mostra de Filmes de Hip Hop. O evento contou com a exibição do filme “Keepintime”, documentário dirigido por B+ em que DJs de rap e bateristas de funk e soul se encontram para fazer música. Um desses artistas era Madlib, colega e parceiro músico de Dilla.
A foto de Dilla no mina é hoje um dos mais emblemáticos registros do artista em ação. Essa também foi sua última vez em uma loja de discos. Dilla morreu em fevereiro do ano seguinte, vítima das complicações causadas pela doença que já estava em estágio avançado no Brasil.
Desde logo, todo dia 7 de fevereiro é festejado porquê Dia do Dilla. Neste, completaria 50 anos. A data marca o promanação do produtor, em 1974, e o lançamento de “Donuts”, em 2006, seu segundo e mais seminal álbum.
Batizado James Dewitt Yancey, Dilla habita o panteão dos maiores produtores de rap do mundo —denominado Mozart do hip-hop pelo jornal britânico The Guardian. Seu estilo de tocar a bateria eletrônica sem fazer uso do recurso “quantize”, que ajusta as batidas ao tempo com exatidão matemática, e seu tino único para o sampling, a operação de copia-e-cola fundamental do rap, o transformaram em figura de douto entre fãs e artistas dos mais renomados.
Uma vez que um disco ou uma rosquinha que gira, a vida de Dilla deu uma volta completa naquele dia em São Paulo. Ele encontrava in loco aquela música que conhecera anos antes na fria cidade de Detroit, nos Estados Unidos, onde nasceu.
“Eu me apaixonei pela música brasileira no dia que escutei um álbum do Sergio Mendes, quando o [baterista] Karriem Riggins veio ao estúdio e pedi a ele alguma bossa novidade. E ele me deu exatamente o que eu estava procurando”, diz o próprio Dilla no encarte do disco Welcome 2 Detroit.
O álbum tem duas composições de sensíveis ares brasileiros: “Brazilian Groove (Ewf)”, homenagem à música “Brazilian Rhyme”, do conjunto Earth, Wind & Fire, e “Rico Suave Bossa Novidade”, fita que usa um sample do samba jazz “Cidade Vazia”, de Milton Banana Trio.
Lançado em 2001, o disco se sucedeu a outros experimentos do produtor com MPB: “I Don’t Know”, de 2000, junta samples de James Brown e Baden Powell; “It’s Goin’ Down” revisita compassos de “Boa Termo”, de Sérgio Mendes.
Foi também no Brasil onde Dilla buscou o som de um de seus maiores sucessos. Em “Runnin’”, do quarteto californiano Pharcyde, ele mistura o violão de Luiz Bonfá e o sax de Stan Getz na fita “Saudade Vem Correndo” a seu boombap —a fórmula básica do rap.
A música foi lançada em 1995 e alçou Dilla aos altos rankings do hip-hop. Rappers de várias partes dos Estados Unidos, novatos e experientes, queriam colaborar com aquele compositor sui generis, uma logo promessa que se confirmaria em sua curta, mas prolífica curso. “‘Runnin” foi o primeiro rap a usar um sample de música brasileira”, diz B+.
O fotógrafo conta que o invitação para Dilla vir ao Brasil partiu de Madlib. “A gente estava no meu carruagem em Los Angeles, aí ele falou: a gente devia convocar o Dilla para esse show”. Madlib logo ligou para Dilla e perguntou se ele gostaria de vir para o Brasil, que teria concordado sem titubear. Segundo B+, somente alguém com intensa conexão com a música brasileira aceitaria fazer uma viagem tão longa com uma saúde tão frágil.
Naquele dia, depois da sessão de compras, Dilla e Madlib voltaram para o quarto do hotel com uma penca de compactos. Em um toca-discos portátil, rodaram os vinis, empolgando-se a cada novo beat que poderia transpor de trechos de samba melodia, samba enredo, bossa novidade, batuques de todo o tipo e violões de afro-sambas —propriedade marcante no sucesso “Runnin”.
Pares locais, os DJs Nuts e Zegon estão entre os poucos que conseguiram uma pausa para trocar com o produtor norte-americano. “O Dilla fazia música de um jeito que ninguém consegue imitar. Hoje em dia, tem tutorial de tudo na internet. Se você vir um tutorial de porquê fazer beat porquê o Dilla, pode rir, porque não tem porquê”, afirma Zegon, que desde o início dos 2000 tornou-se colega de Madlib e de outros produtores de rap da Costa Oeste dos Estados Unidos.
“Depois que saiu ‘Runnin”, a gente queria passar detrás daquele som que os caras conseguiram tirar com sample brasílico. A sonoridade do Pharcyde foi muito referência para a gente”, lembra Zegon. Na contramão, samples brasileiros se tornaram cada vez mais comuns no hip-hop norte-americano. O caso mais recente é do rapper 21 Savage e do produtor London on da Track, que chegaram ao topo das paradas globais mês pretérito com “Redrum” —a fita usa um trecho dos vocais de Elza Laranjeiras em “Tocata do Adeus”.
No Brasil, o show de Dilla nunca ocorreu. No dia antes da apresentação ao lado de Madlib, o produtor foi levado ao Hospital das Clínicas —uma de suas mãos estava inchada, sintoma da seriedade de sua doença.
O doutor responsável pelos cuidados recomendou um tratamento extenso que poderia ser dirigido no núcleo médico, mas Dilla recusou. Queria voltar aos Estados Unidos. Sua saída só foi autorizada com uso de avião-ambulância que custou US$ 6.000 —murado de R$ 31 milénio em valores atuais.
O fotógrafo B+ lamenta a teimosia do artista. “Ele poderia ter se tratado no Brasil”, conta. “Essa música do 21 Savage é segmento de uma ponte que o Dilla fez. Será que conheceríamos Arthur Verocai cá nos Estados Unidos sem o trabalho do Dilla? Será que o Seu Jorge ia ser tão grande cá sem o Dilla? Todos são segmento de uma mesma construção. O Dilla transcendeu a máquina porquê produtor” —e sua obra criou um gavinha inquebrável entre o hip–hop do Brasil e dos Estados Unidos.