Raízes Negras, Femininas E Religiosas: Entenda O Enredo Da Viradouro

Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro

Brasil

Para edificar o enredo vencedor do carnaval do Rio de Janeiro em 2024, o carnavalesco Tarcísio Zanon, da Unidos da Viradouro, buscou inspiração em tempos e espaços longínquos. Levou para a Marquês de Sapucaí uma história do século XVIII, que aconteceu na costa ocidental da África. 

Mas se engana quem imagina uma verdade muito distante do Brasil. O samba resgata as ancestralidades africana, negra, feminina e religiosa que construíram segmento importante da cultura e da sociedade brasileira.

O título do enredo é “Arroboboi, Dangbé” e conta a história das guerreiras Mino, do reino Daomé, atual Benin. Em meio às batalhas na região, do qual são protagonistas, elas são iniciadas espiritualmente pelas sacerdotisas voduns, uma dinastia de mulheres escolhidas por Dangbé. É dessa forma que nasce o sábio à serpente vodum, que se dissemina pelo reino. E que chega depois ao Brasil, em terreiros na Bahia, sob a liderança da sacerdotisa daomeana Ludovina Pessoa, que espalhou a fé nos voduns pelo território.

Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro. Na foto Claudia Alexandre. Foto: Claudia Alexandre/Arquivo Pessoal
Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro. Na foto Claudia Alexandre. Foto: Claudia Alexandre/Arquivo Pessoal

Jornalista, sambista e investigador da religião Claudia Alexandre. Foto: Claudia Alexandre/Registro Pessoal

A jornalista, sambista e investigador da religião, Claudia Alexandre, considerou o enredo da Viradouro uma vez que “espetacular”. Ela é autora dos livros “Orixás no Terreiro Sagrado do Samba” e “Exu-Mulher e o Matriarcado Nagô” e tem vínculos profundos com os temas religiosos apresentados na Sapucaí. É iniciada do Terreiro Ilê Ogodô Dey, de Cascata, no Recôncavo da Bahia. Lá, assume a posição de Ebomi de Oxum, da Pátria Nagô-Vodum, onde o sábio a Oxumaré é muito importante.

Oxumaré é uma potestade muito antiga, de raiz africana, normalmente representado por uma serpente, tal uma vez que no enredo da Viradouro. De tratado com a tradição, Oxumaré participou da geração do mundo, reunindo a material e dando forma ao planeta. É ela que sustenta o universo, controla e põe os astros e o oceano em movimento, tendo desenhado os vales e rios da Terreno.

“É um sábio que se mantém de forma próprio no Brasil. O enredo passa por questões necessárias do campo afro-brasileiro religioso. Normalmente, há uma demonização que impede que se conheça a riqueza e a valor para alguns grupos da sobrevivência das memórias e dos cultos que se voltam para a ancestralidade africana. O feminino sagrado das heranças africanas sofre um apagamento. E a questão do poder da mulher negra a partir das religiosidades foi muito valorizada pela Viradouro”, analisa Claudia.

A sambista e pesquisadora disse ter visto com muita emoção ao desfile da escola de Niterói, principalmente por ter se sentido representada uma vez que religiosa e mulher negra. Para ela, o carnaval das escolas de samba é próprio por dar centralidade às narrativas e histórias do povo preto.

“A ancestralidade se levanta por meio das escolas de samba para ampliar vozes negras e memórias apagadas, ou desprezadas pela história. Pouco se sabe sobre as redes de solidariedade e flutuação dos candomblés e suas nações. A serpente é trazida uma vez que elemento sagrado de uma pátria quase desconhecida no Sudeste. Mas muito presente em alguns terreiros de Salvador e do Recôncavo da Bahia, que cultuam os voduns, e no Maranhão, na Morada das Minas. E tudo isso é ignoto, primeiramente, porque não está escrito e registrado na história do Brasil, mas também muito por conta do processo de dominação da religião católica na sociedade brasileira”, diz Claudia.

Sambódromo da Marquês de Sapucaí - 12/02/2024
Viradouro - Foto: Marco Terranova/Riotur
Sambódromo da Marquês de Sapucaí - 12/02/2024
Viradouro - Foto: Marco Terranova/Riotur

Sambódromo da Marquês de Sapucaí – 12/02/2024 Viradouro – Foto: Marco Terranova/Riotur – Marco Terranova/Riotur

Emoção

Para Luciane Reis, o enredo da Viradouro não podia ter outra nota, se não 10. Ela faz segmento do terreiro Ilê Axé Oxumaré, de Salvador, considerado um dos mais relevantes templos da cultura afro-brasileira. Ele foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Vernáculo (Iphan), em 2013. Emocionada, Luciane assistiu ao desfile da Viradouro duas vezes e acompanhou, pela televisão, a apuração nesta Quarta-Feira de Cinzas (14).

“É uma verdadeira enunciação de paixão! Estou cá entre chorar, dar risada e agradecer a esse orixá da minha vida”, disse Luciane. “Eles acertaram em tudo. Não tem um erro. Ver meu orixá ser retratado com tanto saudação e paixão foi uma honra! Parabéns à Viradouro!”, celebrou Luciane.

Luciane é uma vodunci de Oxumaré, o que equivale a uma Yawo ou esposa de orixá. Baiana, mangueirense de coração, se rendeu ao samba da Viradouro, por trazer um orixá de quem poucas pessoas falam.

“Desconhecem que é uma das energias mais lindas, que seguram o universo. É considerado uma força que toma conta, que segura a terreno, mas para mim, ele é mais do que isso. Oxumaré é o orixá que eu passo boa segmento do meu tempo aprendendo a cuidar, a mourejar, principalmente quando fala das minhas emoções”.

Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro.  Foto: Brunno Rodrigues/Divulgação
Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro.  Foto: Brunno Rodrigues/Divulgação

Babalaorixá Ivanir dos Santos. Foto: Brunno Rodrigues/Divulgação

O Babalaorixá Ivanir dos Santos – professor no Programa de Pós-graduação em História Comparada pela Universidade Federalista do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ) – entende que o enredo da Viradouro ajuda a vulgarizar pautas importantes de grupos que até hoje são socialmente discriminados. Ele está em viagem na Nigéria e acompanhou a apuração do carnaval de lá.

“O desfile das escolas de samba é um momento muito importante para as religiões de matriz africana. É quando se mostra com distinção todo o esplendor das relações sociais, culturais e espirituais das nossas tradições. Vencer o carnaval com esse enredo é uma grande taxa para a luta contra a intolerância religiosa no Brasil e para a resguardo das tradições que tanto contribuem para a nossa identidade cultural”, disse Ivanir.

“É um enredo que reverencia a nossa ancestralidade feminina e impulsiona a juventude de mulheres negras em procura dos direitos delas. É um enredo luminoso, que contribui para a autoestima das nossas filhas e netas, para que entendam que precisam continuar  sempre lutando”, complementou.

Deslizes

Para Wanderson Flor, professor de filosofia africana e direitos humanos na Universidade de Brasília (UnB), a Viradouro acertou ao retratar as diferentes dimensões ritual, cultural e política dos cultos voduns.

“O feminino aparece uma vez que protagonista, descontruindo a imagem machista que se tem sobre o continente africano, uma vez que se lá as mulheres, desde sempre, tivessem um papel subalternizado. Pelo contrário: elas foram guerreiras, estrategistas, sacerdotisas, lideranças políticas, nos dando uma prelecção, a partir dos imaginários africanos e afrodiaspóricos, sobre a paridade entre homens e mulheres. O enredo é uma lição de história política e cultural, com suas tensões e dinâmicas, e de resistência. E, sobretudo, ajuda a não termos imagens homogêneas do continente africano e de suas presenças no Brasil. Somos herdeiros de várias Áfricas e conhecê-las em sua pluralidade é saber melhor quem somos”, disse Wanderson.

Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro. Na foto Wanderson Flor. Foto: Wanderson Flor/Arquivo Pessoal
Raízes negras, femininas e religiosas: entenda o enredo da Viradouro. Na foto Wanderson Flor. Foto: Wanderson Flor/Arquivo Pessoal

Wanderson Flor, professor de filosofia africana e direitos humanos na UnB. Foto: Wanderson Flor/Registro Pessoal

Mas o professor da UnB também fez uma avaliação sátira sobre o uso de algumas palavras no samba-enredo. Ele entende que houve deslize ao retratar uma cultura daomeana com os termos de outro povo, os iorubás, que em determinados momentos foram inimigos.

“Palavras uma vez que Axé e Aláfia, não pertencem ao imaginário daomeano dos cultuadores de vodum. Mas, ao mesmo tempo, mostra uma vez que, na história do candomblé, já cá no Brasil, os povos africanos se uniram todos – tanto os povos vindos do centro-sul africano, quanto os que vieram da África Ocidental, em crenças, valores, práticas e, por que não, línguas. Não sei em que medida essa última dimensão foi explicitada, mas pensar nos esforços de Ludovina Pessoa, uma das matriarcas dos candomblés jêjes, pode nos dar pistas para pensar que nem só com o catolicismo se fizeram os sincretismos, mas também com os outros povos do continente africano que foram trazidos para cá”.

Confira o samba-enredo da Viradouro:

Arroboboi, Dangbé

Eis o poder que rasteja na terreno
Luz pra vencer essa guerra, a força do vodum
Rastro que abençoa Agoye
Reza pra renascer, toque de Adahum
Lealdade em brasa rubra, queima em forma de mulher
Um levante à liberdade, potestade em Daomé
Já sangrou um oceano pro seu rito incorporar
Num Brasil mais africano, outra areia, mesmo mar

Ergue a moradia de bogum, atabaque na Bahia
Ya é Gu rainha, herdeira do candomblé
Centenário fundamento da Costa da Mina
Semente de uma legião de fé

Vive em mim, a irmandade que venceu a dor
A força, herdei de Hundé e da luta mino
Vai serpenteando feito rio ao mar
Círculo-íris que no firmamento vai clarear
Ayî! Que seu veneno seja meu poder
Bessen que corta o amanhecer
Sagrado Gume-kujo
Vodunsis o respeitam, clamam Kolofé
E os tambores revelam seu Afé

Ê Alafiou, ê Alafiá!
É o ninho da serpente não tente desafiar!
Ê Alafiou, ê Alafiá!
É o ninho da serpente prestes pra lutar! 

Arroboboi, meu pai! Arroboboi, Dangbé!
Destila seu axé na espírito e no pele
Derrama nesse solo a sua proteção
Pra vitória da Viradouro!

Sambódromo da Marquês de Sapucaí - 12/02/2024
Viradouro - Foto: Alex Ferro/Riotur
Sambódromo da Marquês de Sapucaí - 12/02/2024
Viradouro - Foto: Alex Ferro/Riotur

Sambódromo da Marquês de Sapucaí – 12/02/2024 Viradouro – Foto: Alex Ferro/Riotur – Alex Ferro/Riotur

 

Fonte EBC

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