O audiovisual brasílico é hoje um envolvente econômico desigual regulatória e tributariamente, caracterizado por tensões entre atividades econômicas de segmentos de mercado que se canibalizam.
O grande fator de desequilíbrio são os serviços de vídeo sob demanda, ou VoD, e streaming, que, gozando de grande relevância econômica e influência sobre a organização da economia, sociedade e Estado, figuram entre as atividades econômicas menos reguladas no país.
Metade da receita publicitária migrou da televisão para as plataformas digitais pela grande capacidade dos provedores de VoD em acessar dados dos usuários e direcionar publicidade para cada tipo, o que contrasta com a quase absoluta privação de informações sobre esses serviços.
O carregamento de canais em catálogo de VoD recebe enquadramento tributário favorável se comparado com seus concorrentes na TV paga, que perde assinantes e receitas. Fabricantes de dispositivos conectados à internet entraram no negócio do teor, tornando mais difícil encontrar canais da radiodifusão nas smart TVs, e sobrepõem publicidade às imagens de canais lineares que licenciam para a sua primeira tela. A TV 3.0 promete produzir interface poderosa entre a TV ocasião e a internet, acenando para um serviço de VoD potencial em cada ducto.
Essas tensões se dão em meio a dinâmicas de tomada indiscriminada de dados pessoais e desorganização da estrutura de receitas dos negócios tradicionais e das relações trabalhistas.
E promovem a convívio entre a bem-vinda variedade editorial com problemas de mesma natureza porquê a proliferação de notícias fraudulentas, publicidade enganosa ou de produtos ilícitos, discursos de ódio, agressão à puerícia e a vulneráveis, ataques ao Estado de Recta etc.
É nesse mercado de licenças sobre os conteúdos audiovisuais que se colocam os desafios de geração e circulação de propriedade intelectual brasileira e independente, de incitação à transação de direitos autorais de cunho patrimonial, de combate à verticalização e concentração econômica, de resguardo da concorrência, de geração de trabalho e desenvolvimento regional, de políticas afirmativas e de reparação histórica.
Mas sobretudo de transmigração para um protótipo menos concentrador, de menor dispêndio e maior lucro de graduação, capaz de fomentar catálogos, a partir da integração com a produção independente.
Tramitam no Senado e na Câmara dois projetos de lei que disputam a regulação dos serviços de VoD, em meio a quatro consensos —a urgência de regulação; a abrangência contemplando as modalidades de compra avulsa (T-VoD), por assinatura (S-VoD) e via oferta gratuita suportada por publicidade (A-VoD); a Ancine porquê órgão regulador; e uma novidade hipótese de incidência da Condecine sobre a receita operacional bruta dos serviços.
Cabe ao senador Eduardo Gomes (PL-SE) e ao deputado federalista André Figueiredo (PDT-CE), relatores dos substitutivos em tramitação, conduzirem esse processo sem permitir que a lei que regulará os serviços do VoD seja criada ao largo das conquistas históricas das políticas do audiovisual brasílico.
Para tanto, são mais relevantes e merecedores de aperfeiçoamento no texto dos substitutivos aspectos regulatórios afetos à estrutura da lei, ao contextura de abrangência, à organização jurídica e institucional e às atribuições da poder regulatória, além de melhor tratamento conferido à produção independente, mormente quanto às regras de cotas e proeminência.
São ainda necessários aperfeiçoamentos relacionados a uma definição de produtora brasileira constituída sob as leis brasileiras, com sede e governo no país, e controle por brasileiros; à superação da posição marginal da produção independente nos substitutivos; à efetividade das cotas com dimensionamento capaz de estimular associações entre provedores e produtores independentes; à supressão do rol de deduções e isenções de modo a inverter a situação que hoje significaria arrecadação a menor do que a legislação em vigor permite; à supressão de financiamento público de obras proprietárias de provedores e outras despesas regulares.
Mas o meio de seriedade do debate tem se concentrado sobre a tributação e a emprego dos recursos, ainda que se desconheça a receita operacional bruta dos serviços de VoD, informação forçoso à discussão sobre o valor da alíquota e projeção dos investimentos.
A Lei deveria prestar homenagem à arquitetura institucional do audiovisual no estado brasílico, que tem no Parecer Superior de Cinema o órgão responsável pela fixação das diretrizes e metas do audiovisual vernáculo e no Comitê Gestor do FSA, sob a presidência do titular do Ministério da Cultura, a responsabilidade pelo planejamento anual e modelagem das linhas de financiamento e suas regras de negócio.
Consome-se de tudo em vídeo, para além do entretenimento e informação, cada vez mais de forma não linear. Muito regular cada novo segmento implica ampliar o mercado de licenças sobre conteúdos audiovisuais.
Regular os serviços de VoD poderá trazer mais que os expressivos resultados obtidos com a regulação da TV paga, considerando o poder estruturante desses serviços em organizar o envolvente audiovisual no país.
Não se trata de reivindicar um protótipo ideal, o que corresponderia a uma lei universal que harmonizasse marcos legais e reduzisse tensões entre os segmentos do audiovisual brasílico.
Trata-se de confirmar conquistas das políticas audiovisuais constituídas por meio de um marco permitido que enfrente os problemas reais do espaço audiovisual brasílico, mire objetivos de desenvolvimento do país, suas empresas, profissionais e cidadãos, exija responsabilidade dos editores de teor e seja contemporâneo dos debates regulatórios atuais.
