Quando “Relatos Selvagens” foi lançado no Brasil, no final de 2014, não foram poucos os críticos brasileiros que o usaram porquê exemplo da superioridade do cinema prateado sobre o nosso.
Dez anos depois, a discussão já não faz o menor sentido, mas vale a pena voltar ao filme, que agora reestreia nos cinemas posteriormente três anos em exibição em São Paulo, até 2017, para ver o que restou de sua verve provocadora, que revelava, na quadra, alguma coisa que o cinema brasílico, supostamente, seria incapaz de fazer.
Primeiro ponto: evidente que o cinema brasílico não pode fazer coisas que o cinema prateado faz. O contrário também é verdadeiro. Cada cinematografia tem seus percalços, suas medidas de representação, suas ambições e seus cenários a serem criticados. Temos que nos preocupar em fazer o melhor cinema brasílico verosímil, não um cinema melhor que o prateado.
Por fim, porquê medir essas coisas? Público e premiações nunca foram bons critérios de avaliação. E uma avaliação mais cuidadosa só seria verosímil vinda de alguém que viu todos os filmes produzidos nos dois países num período específico. Mesmo assim, é puramente subjetivo.
Segundo ponto: para permanecer muito evidente, há talento na direção de Damián Szifron. Alguma coisa desse talento está presente também em seu filme seguinte, “Sede Assassina”, de 2023, seu primeiro trabalho nos Estados Unidos e o primeiro em inglês. Mas se encontra de forma mais intensa em “Relatos Selvagens”, ainda que os equívocos também apareçam de forma mais vistosa.
Temos seis histórias envolvendo revoltas, vinganças, traições, devassidão e protestos. Na primeira delas, que funciona porquê um prólogo, um piloto junta num mesmo voo todos que o humilharam no pretérito, para depois jogar o avião contra seus próprios pais, os culpados de todo o seu sofrimento, segundo seu psicanalista, por sinal, um dos passageiros.
Filmes em episódios costumam pecar pela irregularidade. Alguns relatos são melhores que outros, não só pela trama que ensejam, mas eventualmente pelo roteiro, pela direção ou pela tradução de todo o elenco.
“Relatos Selvagens” também sofre desse mal, ainda que nenhum incidente seja realmente ruim, porquê também não há incidente muito bom. Todos estão num espaço qualitativo entre o interessante e o bem-sucedido. Todos têm escolhas que me parecem acertadas e escolhas que me parecem infelizes.
Em alguns momentos, o filme parece ter esperteza em excesso, piscadelas para plateias eventuais de shopping centers. Em dois episódios, o primeiro e o último, há um personagem vomitando, por exemplo. É uma das pragas do cinema contemporâneo. No entanto, percebemos que os melhores episódios têm essa esperteza muito dosada.
Vejamos o da estrada, que acentua seu vista de escorço entusiasmado. Temos um varão com seu coche novo e veloz tentando ultrapassar um outro com o coche velho e lento. Ao ser ofendido na ultrapassagem, o do coche velho passa a hostilizar o riquinho depois que nascente foi obrigado a parar por pretexto de um pneu furado.
Temos portanto um duelo entre quem não tem zero a perder e quem acha que pode lucrar tudo. Szifron mostra o prateado tosco e o prateado rico e arrogante, duas facetas masculinas ridículas. Talvez esteja aí uma chave para entender o que se passa na Argentina: uma grande região, refém por vontade própria de um presidente ultraliberal com motosserra. A vida ultrapassa a arte, mais uma vez.
Outro incidente de destaque é o do playboy que atropela e mata uma mulher prenhe. Porquê é rebento de um poderoso ricaço, faz-se um pacto para que um empregado assuma a culpa. O investigador desconfia, mas o numerário compra tudo —menos a indignação popular.
Szifron conta essa história do ponto de vista dos ricos, o que a deixa ainda mais cruel e revoltante. É o incidente de dramaturgia mais sólida, mais pisado nas interpretações e nos traumas dos personagens. Sugere que nas altas esferas econômicas a compra de pessoas é tão frequente porquê a de bens de consumo.
O incidente mais fraco é justamente o que tem Ricardo Darín, ator que, sem querer ou planejar, tornou-se para muitos um símbolo da tal superioridade do cinema prateado. Ele não tem culpa, mas a história sádica de um varão maltratado de todas as formas pelo sistema não encontra sua melhor realização e é prejudicada por uma ironia tola no final.
Se temos no filme alguns dos sinais do pior que o cinema deste século nos deu, é necessário declarar que Szifron, pelo talento de sua direção e pelo risco de algumas escolhas, está muito supra de outros provocadores atuais, porquê Ruben Ostlund e Yorgos Lanthimos.
Talvez essa reestreia sirva para separarmos os diretores com alguma verdadeira anseio autoral daqueles que só se interessam em reptar o sabor médio da maneira mais grotesca verosímil.