Caminhar sobre os tablados de madeira colocados no pavimento da Pina Estação para a exposição de Renata Lucas razão uma sensação de instabilidade. Por fim, não se pisa sobre uma superfície totalmente plana onde se tem a teoria de terreno firme, mas em chapas mais ou menos regulares que estalam conforme o andejar, lembrando ao testemunha que ele está num cenário, um envolvente artificialmente construído.
“Talvez não seja o conforto de você ser um visitante passivo, que vai olhar as coisas que estão na parede. Você está implicado de alguma forma, demanda alguma coisa de você”, diz a artista, sobre as obras exibidas agora no museu na região médio de São Paulo, que precisam da participação do testemunha para fazerem sentido.
Intitulada “Domingo no Parque”, a exposição remonta alguns dos principais trabalhos dos 20 anos de curso da artista, o que confere à mostra, organizada por Pollyana Quintella, um caráter retrospectivo. Mas os trabalhos de Lucas —nome médio da arte brasileira no século 21—, estão intrinsecamente ligados aos ambientes em que são realizados, de modo que o que o público vê são versões novas de projetos executados anteriormente.
O pavimento de madeira foi uma solução encontrada pela artista diante da limitação de intervir no prédio da Pina Estação, tombado pelo patrimônio histórico, e algumas obras deixam simples porque os tablados, que cobrem quase todo o espaço expositivo, são necessários. Em “O Perde”, por exemplo, bolas caem das caçapas furadas de uma mesa de sinuca e rolam por um trajeto marcado no piso até serem engolidas por buracos na parede.
Uma vez que num passe de mágica, as bolas são expelidas no térreo do museu, organizando-se ao casualidade junto à porta de ingresso. A obra, antes montada na unidade paulistana da galeria A Gentil Carioca, é uma metáfora poderosa de uma vez que decisões tomadas por quem tem o poder —no caso, os jogadores de sinuca— se refletem em outros lugares e afetam quem está longe.
“O Perde” é uma modelo de uma vez que a artista lida com a arquitetura em seu trabalho, intervindo nos espaços construídos, sejam eles públicos ou privados, e pedindo aos visitantes que prestem atenção aos seus entornos. Em outras ocasiões, Lucas colocou uma rua de asfalto em Veneza, duplicou uma lajeada num bairro de São Paulo —incluindo as vegetalidade e os postes de iluminação—, e instalou tablados de madeira sobre o asfalto num intercepção movimentado no Rio de Janeiro.
São todas formas de subverter os espaços a que estamos acostumados e questionar o que arquitetos e planejadores urbanos decidiram para nós. Pela graduação e complicação de seus projetos, a artista precisa negociar com várias instâncias, uma vez que órgãos de preservação do patrimônio, a companhia elétrica, e até moradores e síndicos de prédios, a exemplo de uma obra não realizada em que escreveria nas fachadas de edifícios de São Paulo a frase “cá havia um projeto de cidade”.
“Eu preciso confiar no impossível o tempo todo”, diz a artista, acrescentando que seu trabalho se materializa a partir das contingências dos locais em que atua. Os acordos necessários para a materialização de sua arte são uma metáfora de uma vez que as coisas funcionam. “Você vai negociar a cada dia, ajustar e negociar a sua vida e a do outro. Todo tempo a gente faz isso. As coisas não estão dadas.”
Nascida em 1971 em Ribeirão Preto, no interno de São Paulo, a artista se firmou uma vez que uma das mais importantes de sua geração ao levar a cabo sua poética radical de diferença temporária dos espaços. Ela já participou das bienais de São Paulo e Veneza e da Documenta de Kassel, a principal mostra de arte contemporânea do orbe.
Enquanto seus trabalhos nas ruas e em prédios levantam questões do chegada à cidade e quem manda nela, outra segmento da produção de Lucas responde mais diretamente ao cenário político do momento, uma vez que na vez em que instalou uma bandeira do Brasil caída na Morada do Povo, em São Paulo, dias antes da primeira eleição de Jair Bolsonaro. Mas suas obras, embora ancoradas em pautas do presente, não são panfletárias ou de caráter educativo.
Na obra que dá título à mostra na Pina Estação, a artista faz o público repuxar uma parede em sentido anti-horário para ativar um disco de vinil fixado no pavimento, que portanto toca “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. A música, que marcou o início da tropicália, sai dos alto-falantes enrolada, porque o giro da parede não necessariamente corresponde às 33 rotações por minuto que um LP necessita para reproduzir uma filete na velocidade correta.
Lançada durante a ditadura, a cantiga era muito ouvida pelos pais de Lucas, militantes de esquerda, e adquiriu sentido autobiográfico para a artista, que conta ter desenvolvido “com amigos dos meus pais desaparecendo”. Afora isso, sua exposição acontece no prédio que abrigou o macróbio Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, um meio de repressão e tortura durante os anos de chumbo.
Segundo a artista, a teoria é revolver para ressignificar o pretérito. “Ainda mais recentemente, com essa loucura que a gente viveu de reivindicar uma ditadura, endeusar torturador. É uma coisa absolutamente fora de cogitação. De tudo o que eu imaginei que pudesse viver na minha vida, isso estava completamente fora.”