Terno branco, camisa azul oportunidade e o marchar de quem não se cansa de ouvir a mesma filarmónica anunciando sua ingresso para mais uma noite de fãs eufóricos.
Para o Brasil que vê as tradições com carinho, a noite desta quarta-feira (27) no Allianz Parque, em São Paulo, dura há 50 anos, quando Roberto Carlos gravou seu primeiro próprio de termo de ano na Orbe.
De lá para cá, a atração se repetiu religiosamente, com somente duas intercorrências —uma por mensalidade íntimo, com a morte de sua esposa Maria Rita, há 25 anos, outra global, em 2020, com a pandemia.
Previsível sem deixar de ser romântica e catártica, a apresentação aproveitou o estádio para transcrever a grandiosidade do artista, querido por tantos e odiado por outros que mal incomodam seus fiéis, ao lado de nomes porquê Gilberto Gil, Chitãozinho e Xororó e Zeca Pagodinho. Enfim, quem está na boca do povo há, muito, meio século.
Era um público vasto, senhores e senhoras, filhos e filhas presenteando mães e avós, grupos de amigas todas com a mesma camiseta vermelha florida, adolescentes que perguntavam quem era aquela tal Wanderléa que subiu ao palco, já nos minutos finais da apresentação.
Mas nunca é tarde para se emocionar ao som de “Ternura”, em um dos duetos mais comoventes da noite, reafirmando a parceria longeva —ele aos 83, ela com 80 recém-completados.
O espetáculo, visto em primeira mão por murado de 40 milénio pessoas antes da exibição na TV, em 20 de dezembro, se desenrolou sob a sombra de um verosímil termo do programa, alguma coisa que teria surgido durante uma reunião para a renovação do seu contrato com a emissora, que mantém desde os anos 1970, firmado à era sob os auspícios de Boni.
Agora, é o fruto, Boninho, que deixará a emissora depois 40 anos de moradia, quem dirigiu o programa, ao lado de Angélica Campos. Questinado antes do show, ele diz zero saber sobre o horizonte da atração.
Não é a primeira vez que circulam esses rumores. A depender da equipe do cantor, que nega o termo do programa, também não será a última. Mas se o for, o espetáculo poderá repousar muito na memorandum, com uma apresentação voltada muito mais à tradição que a renovações frustradas.
Depois um próprio, no ano pretérito, com participações deslocadas de Jão e Paulo Vieira, e uma trupe de influenciadores em 2022, a inclusão de nomes porquê Letícia Colin, Sophie Charlotte e Dira Paes foi suficiente para remediar apostas anteriores menos bem-sucedidas. O resultado foi um espetáculo muito mais visceral que o lazer televisivo das últimas edições.
Finalmente, Roberto está há quase 30 anos mais de olho no ramo empresarial que no criativo, e se especializou na pregação de um repertório que cristaliza detalhes do íntimo brasílico.
E zero melhor para esse porto seguro sentimental de um país, nas palavras do jornalista e biógrafo Jotabê Medeiros, que estar entre os seus, numa missa oportunidade ao som de “Uma vez que É Grande o meu Paixão por Você”.
Foi belo o encontro com Gil, um dos pontos altos da atração, logo no início, com “Vamos Fugir” e “A Sossego” numa toada reggae, praieira, com as ondas no telão ao fundo.
Essa venustidade pulsa nessa simetria entre artistas tão próximos e tão fundamentalmente diferentes. Não custa lembra: o jovem-guardista, católico, recusou gravar “Se Eu Quiser Falar com Deus”, do tropicalista, que versa sobre um vazio-Deus, filosófico, oposto ao perfil evidente do divino para o capixaba, latente em “Quando eu Quero Falar com Deus”, “Jesus Cristo” ou “Nossa Senhora” —as duas últimas onipresentes nos setlists.
É, em outras palavras, uma sociedade verosímil entre o Brasil carola e aquele dos jovens descolados ainda fissurados pelas cisões políticas mais imediatas —alguma coisa superado por Roberto.
Já com Zeca, o artista se tornou secção da plateia, ecoando o refrão de “Vida Leva Eu” e “Sonho Meu”, antes de emendar uma tradução enérgica de “Eu Te Senhor”. Enquanto isso, a cada novidade ingresso, uma risco do tempo exibia breves recortes de todos os especiais do artista —reprisados ao longo do ano no meio Viva e disponível no Globoplay— e fotos flutuavam entre degradês e efeitos dignos de Hans Donner.
Mais explosiva foi a ingresso de Chitãozinho e Xororó, trazendo aos holofotes o espírito sertanejo que convivem com as letras de Roberto e Erasmo Carlos. “Evidências” e “Sinônimos”, porquê de hábito, terminaram ovacionadas com pedidos de bis.
Falando em versos memoráveis, poucos souberam escoltar Roberto em “Bicho Solto”, por ora só tocada em shows e que, sem gravação disponível, não estourou porquê “Esse Face Sou Eu”, tema da romance “Salve Jorge” —curiosamente ausente dessa vez. Mas não há porquê não reconhecer o responsável de “O Portão” e “Fera Ferida” numa letra porquê “todo vira-lata, por paixão, se torna um cão pedigree”.
Com João Barone, Frejat e Paulo Ricardo, o rock de “O Calhambeque” foi um dos momentos mais lúdicos da noite, com o típico recitativo que desafia os músicos no comitiva de Roberto.
Nesse sentido, o deslize mais evidente foi na homenagem a Erasmo, com o cantor entrando na hora errada em “Colega” —que não repetiu para a gravação. Colin, por sua vez, tremia porquê vara virente quando teve de retirar “Olha” três vezes, com o verso inexacto, e, quando enfim acertou, foi abraçada completamente pela força da cantiga a quatro vozes.
Depois de “Jesus Cristo”, que pôs o público todo de pé numa dança ecumênica, Roberto costurou “Eu Ofereço Flores”, sua música mais recente, em que agradece a turba, se preparando para atirar as tradicionais rosas às dúzias.
Mas quem não correu para a grade em procura do seu ramo privado não saiu desiludido. O público catava o confete vermelho que chovia pelo estádio. Fogos de artifício pipocavam. E na saída, flores a rodo, para toda a plateia. Pelas ruas da Pompeia todos levavam, na mão ou na memória, uma emoção e um souvenir do rei.
