A Eunice Paiva que Fernanda Torres interpreta em “Ainda Estou Cá” não é a mesma que habita as páginas de Marcelo Rubens Paiva. E não é, exatamente, a mulher da vida real. Para o filme de Walter Salles, os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega criaram uma personagem própria, com pontos de conexão e de retraimento com o livro e a veras.
“Estamos desenvolvendo esse roteiro desde 2016, e em determinado momento, a Eunice do filme já não era mais a Eunice real ou a do livro. O processo foi contaminando a história”, disse a dupla na semana passada, num pausa da atarefada agenda que cumpria no Festival de Berlim. Eles colaboraram com o roteiro de “O Último Azul”, filme de Gabriel Mascaro a vencer o Urso de Prata.
“O Marcelo nos deu esse presente, de saber a Eunice, mas passamos por um processo de pesquisa e de entrevistas, para complexificá-la, quando decidimos que ela seria a protagonista do filme. Não que estivéssemos buscando um distanciamento do livro, mas queríamos uma proximidade maior com ela e também com a história do país”, afirma Hauser.
“Além de responsável, o Marcelo viveu aquilo, portanto a nossa preocupação era de ser leal às pessoas, não aos personagens. O livro foi o ponto de partida”, continua Lorega. A dupla venceu o prêmio de roteiro no Festival de Veneza pelo trabalho.
Entre os entrevistados durante o processo de escrita, estiveram os cinco filhos de Eunice, que compartilharam suas visões sobre quem era a advogada e ativista pelos direitos humanos, morta em 2018.
Antes de trabalhar com Salles, Hauser e Lorega já haviam emprestado a pena para outro nome importante do cinema brasiliano, Karim Aïnouz. Ambos ajudaram a elaborar o roteiro do documentário “Nauta das Montanhas”, em que o cearense recupera a história de sua família. Hauser também adaptou “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, que em sua versão cinematográfica venceu o prêmio da mostra Um Notório Olhar, em Cannes.
No set, eles tinham a companhia de outros roteiristas proeminentes, Salles e Fernanda Torres. O cineasta tem créditos em textos de alguns de seus filmes –porquê “Terreno em Transe” e “Abril Despedaçado”– e também em obras de outros diretores. A atriz, além de livros publicados, se envolveu na escrita de “Termo” e “O Pensamento”, entre outros.
A troca com eles era permanente, contam Hauser e Lorega. A dupla compara o processo de desenvolvimento ao de uma companhia de teatro, extremamente colaborativo, e dizem que foram convidados por Salles a seguir todos os dias de set de filmagem, muito porquê a lanço de montagem de “Ainda Estou Cá” –normalmente, os roteiristas se afastam da produção depois de entregar o texto.
Falar com os herdeiros de Eunice também foi importante para costurar a trilha sonora. Os roteiristas contam que tinham pouco tempo para apresentar todos os cinco filhos ao público e, por isso, recorreram a músicas que ajudaram a entender a personalidade de cada um.
“O Walter é muito ligado à música, portanto tínhamos uma playlist do filme e fomos falando sobre isso já no processo de escrita do roteiro. ‘Take Me Back to Piauí’, por exemplo, estava presente há muito tempo, porque tira sarro dessa relação com os gringos num momento em que a Vera está indo morar em Londres. ‘É Preciso Dar um Jeito, Meu Camarada’, por outro lado, só achamos na montagem do filme”, diz Lorega.
“Ainda Estou Cá” estaria nos planos da Globoplay para ser adaptada para minissérie, absorvendo cenas descartadas, em próprio sobre os anos finais de Eunice e sua relação com o Alzheimer –um pouco que, a dupla conta, foi preterido para que pudessem se aprofundar no contexto histórico da ditadura militar.
Enquanto não há confirmação dos planos da plataforma de streaming, Hauser e Lorega aproveitam o momento para colher os louros do trabalho, às vésperas do Oscar. O texto do filme ficou de fora da categoria de melhor roteiro ajustado, mas chegou a ser ventilado porquê possibilidade por revistas especializadas e casas de apostas americanas.
“Por seis ou sete anos, esse filme só existia entre nós e o Walter, portanto é bonito vê-lo sendo adoptado por tanta gente. O maior prêmio que podemos lucrar é público, é ver as pessoas discutindo o filme e as questões que ele levanta”, diz Hauser.
“Isso é resgatar a memória, é mourejar em conjunto com um traumatismo que é de todos, não só daquela família. Zero melhor para fazer isso do que o cinema, que nos convida coletivamente a nos emocionar.”