'rua aurora' recupera brilho do cinema de eduardo coutinho

‘Rua Aurora’ recupera brilho do cinema de Eduardo Coutinho – 15/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

É quase impossível não ver “Rua Aurora” sem pensar em Eduardo Coutinho. Não que Camilo Cavalcante se dedique a imitá-lo, não é isso. É que Coutinho em muitos de seus filmes nos apresentou ao lado incomum de pessoas “comuns”, com quem podemos cruzar a qualquer momento sem saber o que realmente trazem consigo e podem repartir com outros.

Cavalcante, ao contrário, nos apresenta o lado geral de pessoas, digamos, “incomuns”, no caso os habitantes da rua Aurora, núcleo historicamente deteriorado de São Paulo. Tudo começa no Hotel Escol. Porquê já indica o nome, um hotel quase em ruínas.

Ali está sua proprietária, que herdou o estabelecimento e momento em que ali ainda havia ao menos a sombra de uma escol. Hoje, em meio a um mobiliário que cai aos pedaços, ela muito que tenta vendê-lo. Mas ninguém se habilita. Por ali vive um senhor, infeliz, rebento ilegítimo de um mandatário. Boa pessoa, diz ele, mas não o amava. Parece que esse era seu triste sorte entre os homens. Diz que tem recebido mais dos animais do que deles.

Eduarda, que se chamava Fábio antes de se assumir uma vez que mulher trans, é proprietária de um cinema pornô. Coisa antiquada, diz ela. Conta que, quando começou a transição, teve de deixar o ocupação. A Igreja Universal, a que pertenceu, não ajudou muito. Encontrou protecção em uma igreja opção, com leitura que lhe pareceu mais piedosa da Bíblia.

Os tipos se sucedem: o gay que foi presidiário, tem traumatismo de policiais e vê o presídio uma vez que inferno. Outro é gay, nordestino e preto: fala do susto que sentiu quando soube dos “skinheads”, inimigos dessas três categorias. Mas hoje tem um ocupação diurno e outro noturno, quando vira drag queen e canta em um inferninho. Manda seu numerário para a família.

Esse envolvente de pessoas familiares, malgrado o estigma de viverem na rua Aurora, de repente pode ser quebrado: uma pugna na rua, uma perseguição em outra, onde um varão parece ter sido assaltado. Porquê se ignorasse tudo isso, em sua pequena loja trabalha o velho alfaiate. E trabalhará até morrer, diz.

Camilo Cavalcante, diretor deste documentário, vai encontrando uma enorme variedade de personagens ali onde se supunha possuir exclusivamente marginais. Zero disso. Lá está a avó, que já foi bandida, chegou a ser presa por latrocínio, porque estava na companhia de bandidos da pesada. Acabou liberada e hoje não quer mais zero com o delito. Vive uma vez que funcionária do Escol. Se dá muito com as pessoas do lugar. Só teme mesmo os “nigerianos”.

Os nigerianos que Cavalcante encontrou são, na verdade, senegaleses. Porquê Laye, cabeleireiro masculino e muçulmano de quatro costados. Os senegaleses são festeiros, também distribuem comida aos pobres na rossio Princesa Isabel.

Muitos se viram para viver, uma vez que o Big Marajá, que parece ter começado na pirataria de fitas VHS, mas a partir daí montou um pequeno poderio, tornou-se inclusive compositor e cantor. Porquê dizem, um marajá. Muito dissemelhante do rapaz também nordestino, que estudou no Paraguai, acabou trabalhando no Mato Grosso do Sul por um mês, foi despedido junto com outros e não recebeu nem salário, nem ajuda para voltar ao Nordeste.

Agora ganha a vida na reciclagem, uma vez que diz, e sofre com o desprezo com que as pessoas olham seu trabalho. Diz que a maior secção das pessoas sem-teto são boas pessoas. Espera conseguir o numerário para a passagem (a prefeitura cortou a verba que antes destinava à repatriação das pessoas, por conta da pandemia —ao menos boa secção do filme foi filmada nessa idade). Aí voltará para ser caminhoneiro, uma vez que os irmãos.

Esse triste passeio pelo não-dito paulistano a horas tantas sofre um solavanco, quando um sax quebra o silêncio. Um músico de rua produz venustidade no lugar pouco inspirador (na verdade, está na Vieira de Roble, junto ao Largo do Arouche, quer expor, é uma licença poética do filme).

Parece a senha para expor que nem tudo é desgraça na Aurora. Lá está também um simpático jamaicano, possuinte do Jerky’s, restaurante de cozinha caribenha.

É quando entramos em um cinema em ruínas. Não se mostra a frontispício, mas parece que lá estão os sobras do velho cine Aurea. Ali aparece Virgílio Roveda, ex-assistente de câmera e ex-faz-tudo nos tempos do cinema da Boca do Lixo. Ele e a atriz Debora Munhyz parecem entrar na história uma vez que fantasmagorias que habitam as ruínas do velho cinema.

O cinema parece deslocado nessa história, mas talvez nem tanto: dessas sombras emerge o imaginário, fantasmas do pretérito (da bandidagem clássica, dos Hiroito ou Quinzinho) investidos nos personagens do presente.

“Rua Aurora: Refúgio de Todos os Mundos” é um belo documentário, em que ficção e veras, mito e presente se fundem para produzir a imagem de um lugar triste, velho e sujo, em que esses fantasmas sobrevivem encarnados em personagens no entanto tremendamente “comuns”, destinados a viver à margem da cidade no núcleo da cidade.

Folha

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