Neste janeiro que segue em marcha lenta, ainda no rescaldo do recesso de termo de ano, a série “Ruptura” lança sua segunda temporada depois de tirar férias por quase três anos. A produção da Apple, uma das mais comentadas dos últimos tempos, explora um ideal utópico em que trabalho e vida pessoal não se cruzam.
Mas já passava da hora de quebrar o hiato e voltar à labuta. “Ruptura”, finalmente, deve muito do seu sucesso à precisão do momento em que foi lançada, no primórdio de 2022, plena pandemia, quando não existiam barreiras entre ofício e lazer, com quartos que serviam de escritórios, e camas, de mesas de trabalho.
Retrato de uma sociedade movida pelo trabalho, a trama imagina porquê seria se pessoas pudessem inserir chips nos cérebros para fabricar duas personalidades distintas, uma dedicada aos serviços profissionais e outra à vida pessoal. Quem faz a cirurgia, chamada de ruptura, esquece tudo o que fez no trabalho quando bate ponto, e vira outra pessoa dentro de moradia —e vice-versa.
Anos depois do coronavírus, com o trabalho remoto cada vez menos popular, “Ruptura” volta trazendo a mesma discussão, mas certamente sem o mesmo apelo. A produção atribui a morosidade da segunda temporada à greve dos roteiristas e dos atores de Hollywood, que travou a gravação de filmes e séries há um ano e meio. A novidade temporada estreia nesta sexta-feira, dia 17, no streaming da Apple.
É irônico que “Ruptura” tenha demorado a seguir porque seus funcionários estavam ocupados lutando por direitos trabalhistas. “Foi importante dar essa pausa para tutorar a classe, passei grande secção do meu tempo indo a piquetes e discussões para só depois voltar ao trabalho”, diz Tramell Tillman, tradutor de Milchick, um dos coadjuvantes que ganha relevância nos novos capítulos.
“Desculpem fazer vocês esperarem por tanto tempo”, brinca a atriz Britt Lower, coprotagonista da série, dando risada. “Estamos cientes de que prendemos o público na ponta de um penhasco.”
Ela interpreta Helly, a mais recente contratada da Lumon, empresa que criou o procedimento de ruptura, o qual ela abomina. Agora, na prosseguimento, a personagem precisa mourejar com as consequências de ter exposto os podres da firma em um evento público. Em paralelo, Mark, o protagonista Adam Scott, volta ao escritório depois de desvendar que sua esposa, até logo tida porquê morta, está viva e é uma das suas colegas de departamento.
O elenco atendeu a prensa em um hotel luxuoso de São Paulo, no mês pretérito, quando veio vulgarizar “Ruptura” na CCXP, o evento de cultura pop. Lower comia pão de queijo na mesma sala de repórteres, enquanto Dan Erickson, pai da série, degustava bolo de fubá sem muita empolgação —lembra sabor de milho, ele disse, entre as mastigadas.
Foi assim, porquê quem não quer zero, que ele imaginou “Ruptura”, quando ainda era aspirante a roteirista e tinha de trabalhar com planilhas enfadonhas numa fábrica de portas. “A série nasceu num dia em que, indo para o trabalho, desejei pular aquelas oito horas, não ter de vivê-las”, lembra ele, sobre uma idade em que sofria com tédio.
O que de primeiro lhe pareceu um sonho, logo ganhou contornos obscuros. Erickson criou um protagonista que faz a cirurgia não porque almeja ter megaprodutividade no trabalho, mas porque deseja desesperadamente olvidar que sua ex-mulher morreu.
Agora o roteirista mergulha ainda mais na psique de seus personagens, dando vazão ao lado sombrio de cada um. Pus eles em situações mais difíceis, diz ele, numa procura de quem são porquê indivíduos e porquê grupo.
Para Lower, o valor da série está nessa pegada filosófica do texto. “No cerne das indagações de todos os personagens está uma pergunta principal: vale a pena se anestesiar por metade do dia para evitar um pouco desconfortável? Ter a capacidade de passar por cima de um pouco difícil porquê o luto é o que nos faz humanos?”
Na vida real a atriz, de 39 anos, tem um jeito bastante desprendido de ver a vida. Tanto é que virou uma espécie de nômade por um tempo. Enquanto as gravações de “Ruptura” não voltavam, ela se livrou de 90% dos seus pertences, se mudou para um trailer —que apelidou de Ovo—, e passou um ano rodando os Estados Unidos.
Foi um período sabatino, de certa forma, mas não sem um pouco de trabalho —ela se apresentou num circo e gravou um filme no Canadá. “Foi uma forma libertadora de viver depois de passar tanto tempo em um escritório fluorescente. Eu precisava de ar fresco.”
É que os cenários construídos para a série são um tanto claustrofóbicos. Com paredes branquíssimas, e um carpete da cor virente, a trama se desenrola por entre corredores longos, de teto plebeu, muito parecidos entre si, numa disposição labiríntica, pontilhada vez ou outra por pinturas que ilustram Kier Eagan, o fundador da empresa Lumon.
“Dá para expor que tenho um lado masoquista, criei uma empresa onde odiaria trabalhar”, brinca Erickson, antes de referir porquê referências os filmes “O Show de Truman”, “Matrix” e “Quero Ser John Malkovich”, que também tentam promover desconforto no testemunha.
Para prometer que as cenas ficassem claras em um cenário tão branco, as equipes de direção de arte e de retrato tiveram de trabalhar na calibração de ângulos, enquadramentos, e principalmente das luzes, que ameaçavam deixar os frames estourados, sem informação de cor. “Nós ficamos malucos gravando por baixo de todas aquelas luzes”, diz Lower.
A sequência de “Ruptura” deve narrar mais sobre a Lumon, e o que exatamente é feito na empresa, mistérios que ficaram sem resposta na primeira temporada. Espera-se também que a série explique melhor quem e quais eram os objetivos do seu fundador, tido pelos funcionários porquê uma figura messiânica, objectivo de devoção.
É fácil enxergar paralelos entre Kier Eagan e vários engravatados do universo corporativo americano, porquê Elon Musk, chefão do Twitter, e Steve Jobs, cofundador da Apple, muito porquê com políticos, caso de Donald Trump, que venceu as eleições e toma posse dos Estados Unidos na semana que vem.
Erickson diz que se inspirou, sim, em figuras reais, mas não cita nomes. “A série examina esse tipo de erudito a corporações, religiões e até governos. Ainda que Kier Eagan tenha vivido há décadas, vários personagens morreriam por ele, e isso é certamente perigoso.”