A quantidade de referências em “Ruptura” é tão excessiva quanto a luz branca dos escritórios da empresa fictícia Lumon, inventora de um procedimento neurocirúrgico adotado nos funcionários de um de seus departamentos para que eles esqueçam quem são fora do envolvente profissional. Arte, retrato, literatura e até mesmo uma disciplina tão árida quanto o urbanismo contribuem para a congruência de um roteiro que trata, no término das contas, de controle, isolamento e dissociação.
De alguma forma, no entanto, nenhuma dessas áreas sobressai nas análises a reverência das metáforas que nos bombardeiam ao longo dos episódios. Quem conseguiu esse feito foi, em primeiro lugar, o design. Depois, a arquitetura. Dois campos que se entrelaçam, e por isso caminham juntos na constituição da marcante ambiência dos mundos abordados na história: o do trabalho e o da vida pessoal.
Na esfera corporativa, a locação que representa o exterior da sede da Lumon é um vetusto prédio da AT&T, construído entre 1959 e 1962 para homiziar seu meio de pesquisas. Um dos últimos projetos do arquiteto e designer de origem finlandesa Eero Saarinen, a caixa envidraçada em Novidade Jersey contém um generoso átrio referto de luz proveniente, pensado para estimular a convívio.
Alguma coisa que, na ficção produzida por Ben Stiller, não acontece: o térreo atua só uma vez que lugar de passagem, a partir do qual os empregados operados acessam um pavimento labiríntico, sem janelas e com salas de pé-direito ordinário —uma vegetal desenhada para evitar o encontro, gerar contenção e embaralhar a noção de tempo.
Ninguém usa o aparentemente único espaço de estar, o lounge em frente ao elevador com quatro largas poltronas verdes de epiderme, protótipo concebido por Henry P. Glass no pós-guerra. Assim uma vez que, num esquina da sala da gerência, a convidativa poltrona Fardos, criada nos anos 1960 pelo brasílio Ricardo Fasanello, atravessa intocada as duas temporadas.
Não é o caso da também vintage 620, de Dieter Rams, na qual Gemma, papel de Dichen Lachman, se acomoda para seus exames de sangue, secção de outro misterioso protocolo ao qual é submetida. Nem das cadeiras Nimrod, design de 2000 de Marc Newson, que, na segunda temporada da produção, decoram a sala onde um empregado casado pode receber a esposa, apesar de não se lembrar dela.
Nessas situações, porém, os estofados estão longe de oferecer guarida. É uma vez que se servissem somente para fins estéticos, evocando a sensação de conforto sem, de traje, proporcioná-lo.
O design, aliás, desorienta o testemunha. Vemos itens que remetem às décadas de 1950 a 1970 —a exemplo do aparelho de som de parede na suíte de Gemma, também de Dieter Rams para a Braun, e móveis de escritório da Olivetti, clássicos do design italiano— convivendo com peças contemporâneas, uma vez que a já citada Nimrod. Há computadores de tubo, mas também smartphones. Tudo para sublinhar nossa confusão temporal. Funciona.
Da porta da firma para fora, assim uma vez que os “innies” (persona dos funcionários) se transformam nos “outies” (a pessoa da “vida real”), a ambientação também muda. Mas o isolamento permanece. Somos transportados a subúrbios e a centros urbanos despovoados, casas apartadas, restaurantes vazios. Mesmo quando os “innies” são premiados com uma excursão ao ar livre, o direcção é um cenário proveniente absolutamente inóspito, tão gelado e desabitado quanto os corredores da Lumon.
Já os interiores das casas passam a sensação de alguma intimidade. Às vezes, isso não tem zero a ver com o mobiliário, mas, sim, com a iluminação indireta —abajures, arandelas, pendentes— com luz amarelada, que traz a teoria de aconchego, muito ao contrário do escritório. Mesmo a moradia mais espartana e sem identidade de todas, a do protagonista, Mark S., papel de Adam Scott, não parece tão ruim graças a esse recurso. Ainda assim, ele nos lembra o quanto todos estão no escuro quanto ao que ocorre dentro dos limites da Lumon.
Há algumas pérolas da arquitetura e do design também nos ambientes domésticos —sempre relacionadas a famílias que aparentam ser financeiramente estáveis ou mais estruturadas. A primeira é a mansão de Devon, papel de Jen Tullock, e Ricken, vivido por Michael Chernus, erguida em 1949 por Kaneji Domoto, discípulo do arquiteto Frank Lloyd Wright, responsável da famosa Mansão da Cascata: uma construção de madeira, pedra bruta e vidro, cenário comparável à imagem de um retiro literário. A produção de Ricken, voltada à autoajuda, explica a prosperidade do parelha.
Já a morada de Burt G., personagem de Christopher Walken, casado com seu parceiro há mais de duas décadas, leva a assinatura de Gerald Luss. Finalizado em 1955, o projeto traz os mesmos madeira e vidro, mas os combina com blocos de concreto aparente. Os elementos resultam num pavilhão integrado, transparente e com um quê de crueza, exatamente uma vez que a conversa que se dá ali entre os donos da mansão e Irving, encarnado por John Turturro, iluminada pelo escultural pendurado da jovem dupla Ben & Aja Blanc.
A mansão mais formal de todas é a de Jame Eagan, personagem de Michael Siberry, CEO da Lumon, uma residência de estrutura metálica e vidro desenhada pelo arquiteto contemporâneo Thomas Phifer —na série, ambientada quase uma vez que uma galeria de arte com móveis de estúdios contemporâneos, uma vez que Sunshine Thacker, John Pump, Hannes Grabin e Erin Sullivan. Mas não há espaço aventado que resolva a relação entre ele e sua filha, a herdeira Helena Eagan, ou Helly R., vivida por Britt Lower, uma vez que fica evidente durante a cena do moca da manhã.
Em “Ruptura”, design e arquitetura estão mais do que entrelaçados. Estão amarrados. Mas, por melhores que sejam, nem sempre melhoram a qualidade de vida ou harmonizam as relações entre seus usuários. Levante é um ideal modernista que, infelizmente, perdeu a validade.
Ou, uma vez que diria Seth Milchik, vivido por Tramell Tillman, com seu rebuscado vocabulário: o que temos cá é zero menos que a encarnação de um princípio estético outrora venerado —um ideal modernista concebido no fulgor de um tempo que acreditava, de coração e de cômputo, na salvamento através da forma.
Mas, uma vez que tantas relíquias de um exalo pretérito, ele agora se vê relegado ao museu das intenções bem-intencionadas, onde repousa, ainda pulsante de significado, mas irrevogavelmente desprovido de aplicabilidade prática na tessitura do presente.