Ruy Cortez Traz Tchékhov Original Ao Sesc Consolação 30/01/2025

Ruy Cortez traz Tchékhov original ao Sesc Consolação – 30/01/2025 – Mise-en-scène

Celebridades Cultura

Dizem que em clássicos não se mexe, e o diretor Ruy Cortez resolveu ir além dessa máxima e encenar “O Jardim das Cerejeiras”, um verdadeiro clássico de Anton Tchékhov, em sua versão integral e original concebida pelo dramaturgo em 1903, fazendo, digamos assim, uma reparação histórica. O teatrólogo Constantin Stanislavski (1863-1938), responsável pela primeira montagem, não gostou da última cena do segundo ato e achou por muito suprimi-la.

Mas agora o público tem a chance de ver a versão inicial e sem golpe na reluzente exibição da Cia. da Memória, em edital no Sesc Consolação, que traz porquê diferencial o espaço cênico criado por André Cortez que incorpora a arquitetura do teatro Anchieta e se derrama pela plateia, tornando-se assim mais um protagonista do espetáculo. A estrutura amplifica a notícia estabelecida em cena com o público, fazendo desse, parceiro dos personagens nas diferentes situações vividas durante a apresentação.

“O Jardim das Cerejeiras” retrata as mudanças sociais da Rússia do final do século 19 por meio da história de uma família aristocrática às voltas com a verosímil perda de seu icônico jardim. O elenco de 14 atores de gerações e correntes dramáticas distintas, atua em perfeita sintonia formando um coletivo rico e diverso para racontar a saga desse clã com personagens vigorosos e ávidos pela vida. Seus sentimentos aflorados os levam a dramatizar os mínimos eventos e, por isso, entram em atrito o tempo todo.

O embate entre Liuba e Pétia Trofímov — Sandra Corveloni e João Vasco, formidáveis — é um dos mais interessantes da peça, pois representa o choque entre duas gerações e duas visões de mundo completamente discordantes. A aristocrata alquebrada, apegada ao pretérito e incapaz de admitir mudanças, Liuba representa a nostalgia por um modo de vida que já não existe mais. Já Pétia, um jovem ideologista e revolucionário, procura um horizonte melhor e acredita na premência de transformações radicais. Com suas ideias progressistas e aspirações de um mundo mais justo, ele representa as novas gerações.

Esse confronto se dá em diversos níveis — visão de horizonte, valores, relação com a propriedade e bens materiais — e é um microcosmo dos conflitos sociais da quadra, além de refletir a dinâmica de domínio dentro da família e da sociedade em universal. Zero mais atual.

Sem colocar o testemunha na posição de juiz, Ruy Cortez e os atores da Cia. da Memória unicamente nos conduzem a refletir sobre as dores do mundo e a impermanência da existência humana, e, apesar da melancolia retratada pelas perdas e esperanças frustradas, a profundidade de emoções vistas em cena, fazem dessa montagem uma das mais belas já feitas.

Três perguntas para…

… Sandra Corveloni

Essa montagem de “O Jardim das Cerejeiras” reúne um elenco grande para os padrões atuais das encenações. Uma vez que foi a experiência de trabalhar com a Cia. da Memória?

Foi muito interessante, sabor muito de trabalhar com um elenco grande porque a minha história é assim. Fiz muitas coisas no Grupo Tapa e na maioria das vezes o elenco era muito numeroso. Fazia tempo que eu não trabalhava com um grupo assim tão grande e acho muito lítico a peça ser contada por várias pessoas. O Ruy [Cortez] foi costurando esses acontecimentos, esses fragmentos que foram aos poucos sendo bordados na nossa trajetória de ensaios. Fizemos um trabalho de entendimento, de ramificação de textos e impressões sobre todos os quatro atos, com muita cautela procurando entender cada coisa, discutindo, levantando possibilidades e material. E na troca com essa turma conseguimos muito material para colocar em cena. Logo foi muito rico, e ainda está sendo uma delícia trabalhar com a Companhia. Muita gratidão por esse trabalho, por esse encontro.

A produção propõe uma experiência diferenciada ao utilizar uma passarela que atravessa a plateia. Uma vez que você descreveria a preço do cenário e do figurino para a construção da atmosfera da peça?

Desde o início tínhamos indicação desse espaço que seria um grande tablado meio passarela, meio rampa que chegaria até muito perto do público, indo até o meio do teatro. Logo a gente já ensaiou pensando nesse espaço. Quando chegamos no teatro e aí já com a cenografia toda do André Cortez, com a rampa e os balões, tudo isso criou uma atmosfera que nos levava a um outro patamar. Me sinto envolvida por aquela floresta, por aquele jardim de árvores brancas ali representado pelos balões.

Interessante também que cada ato com as suas cores trazidas pelo [Fabio] Namatame, a música e os sons da Aline [Meyer], mais a luz do Wagner [Antônio] foi nos conduzindo para um envolvente, uma temperatura e uma textura diferentes. Apesar de a gente subir na mesma rampa e o tablado ser o mesmo, isso vai se modificando a cada ato.

Para mim, a rampa cria um espaço gigante de troca, de nos colocarmos porquê agentes de transformação de renovação. Tudo orquestrado desde o início para que a gente pudesse decorrer com segurança por essa plataforma e nos lançarmos neste espaço para racontar essa história da melhor forma verosímil.

As peças de Tchékhov seguem sendo remontadas ao longo dos anos, atualmente “A Gaivota” (Cia. Bípede de Teatro Rupestre) também está em edital em São Paulo. Uma vez que você avalia a atualidade da obra do dramaturgo para o público de hoje?

Tchékhov é reluzente, genial. Se nós não soubéssemos zero sobre o contexto histórico e lêssemos alguns trechos de todas as obras dele, pareceria que estamos falando do agora. Ele trata de ecologia, desigualdade social, da falta de paixão, da falta de escuta… Tem tudo a ver com o nosso tempo. Logo acho que o Tchékhov se torna cada vez mais necessário. É urgente que isso esteja sendo levado à cena com frequência, porque é de uma qualidade dramatúrgica e de grande preço em diversas questões. Quanto mais você esmiúça esse texto com o objetivo de compreendê-lo, mais perto ele chega de nós, do comportamento humano, dos nossos pensamentos e fragilidades. É tão tão tão humano que chega a doer… nos identificamos não unicamente pela genialidade, por ser tão teatral, mas é tão a gente…E quando esses textos são muito muito falados são colocados num lugar de proximidade é porquê um espelho. Logo acho que é por isso que os textos são tão pungentes, tão importantes.

Sesc Consolação – r. Dr. Vila Novidade, 245, Vila Buarque, região médio. Sex. e sáb., 20h. Dom., 18h. Sessões extras: 6 e 13/2, às 15h; 27/2, às 20h. Até 2/3. A partir de R$ 21, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.


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Folha

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