Uma das questões essenciais envolvendo o cinema brasílico dos últimos anos é a superioridade do documentário músico sobre a representação de músicos famosos com atores e atrizes.
Há quase sempre um pouco estranho quando alguém divulgado interpreta músicos uma vez que Elis Regina, Gal Costa ou Tim Maia. Por mais que Andréia Horto, Sophie Charlotte e Babu Santana sejam pessoas talentosas, suas interpretações parecem se subordinar, em alguma medida, à imitação de trejeitos das personalidades retratadas.
“Saudosa Maloca”, de Pedro Serrano, com Paulo Miklos interpretando Adoniran Barbosa, surge uma vez que uma selecção dentro dessa segunda instância, uma semana depois da estreia do belo documentário “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy.
Curiosamente, Adoniran (1912-1982) e Lupicínio (1914-1974) foram contemporâneos, e fizeram sambas em lugares menos óbvios uma vez que São Paulo e Porto Satisfeito.
Não temos propriamente uma cinebiografia, ao menos do jeito tradicional. O que vemos são episódios inspirados pela obra músico de Adoniran, compositor de “Trem das Onze” e da música que dá título ao filme, tratados de forma cômica, por vezes infantil, o que não é um problema em princípio.
Uma vez que também não é a opção pela comunicabilidade, o modo uma vez que certas coisas são mastigadas para um público muito vasto, que eventualmente conhece a arte de Adoniran meio que de passagem, sabendo de suas músicas sem lembrar de onde vieram.
Com essa sede mercantil, não surpreende que certos lugares comuns da vida na Pauliceia de outros tempos apareçam em altas doses. Também a representação das histórias por trás das músicas, uma vez que a do fracassado samba na morada do “Arnesto”, no Brás.
O protótipo para esse tipo de comédia popular é inequívoco: Mazzaropi. No cinema bem-sucedido do velho Jeca, a teoria das tradições em conflito com a modernização urbana da capital paulista alavancava as cenas e as tramas simplórias, mas divertidas, por vezes inteligentemente pensadas dentro de uma noção calculada de inocência.
Explicando melhor: para se compreender uma simplicidade na representação, é necessário evidente talento, uma perceptibilidade para burilar diálogos e ações plausíveis, que não pareçam uma zombaria vinda de cima. O protótipo se torna mais justificável porque o próprio Adoniran foi ator de “Candinho” e “A Carrocinha”, filmes produzidos e protagonizados por Mazzaropi.
Mas existe outra referência clara para o filme: Charles Chaplin. Já estava evidente antes que Joca e Mato Grosso, personagens de Gustavo Machado e Gero Camilo, fizessem a dança dos pães no balcão do bar onde começam a trabalhar, do mesmo modo que Carlitos a fez no clássico “Em Procura do Ouro”, de 1925.
Há ainda uma base direta, um curta-metragem do próprio Serrano: “Dá Licença de Relatar”, de 2015 e com boa segmento do elenco do longa. Dos quatro personagens principais, uma única mudança: Iracema, paixão dos três amigos, é interpretada no curta por Aisha Jambo, e no longa por Leilah Mulato.
Algumas cenas do curta foram refilmadas no longa. O enfoque é um pouco mais adulto no curta, incluindo alguma nudez. O longa possibilita mais tempo para explorar as histórias, e com isso surge uma bem-vinda melancolia.
Uma das coisas meio tolas do longa já estava no curta: os diálogos com trechos das letras de Adoniran. Assim, quando Joca se despede de uma de suas amantes, logo no início de ambos, ele praticamente recita um trecho de “Trem das Onze” para ela.
Quando começa a ser demolido o lugar onde Adoniran, Joca e Mato Grosso moravam para dar lugar a um prédio basta, ouvimos trechos da letra de “Saudosa Maluca” saindo da boca dos três amigos.
É também um modo de comentar a especulação imobiliária que vinha junto com o “pogressio” e começava a afetar a vida em grandes cidades nos anos 1950.
Nesse sentido, o monte de frases feitas que ouvimos da boca de vários personagens são segmento de uma estratégia de notícia com os ditados, ou melhor, os “deitados” populares que Adoniran repetia e utilizava. “Nóis viemos cá pra ingerir ou pra conversar?”, por exemplo, foi popularizada numa antiga propaganda de cerveja.
Na tentativa de fazer cinema popular, “Saudosa Maloca” é um filme simpático, que se desenvolve razoavelmente muito dentro de sua dupla quesito de comédia e homenagem a um de nossos grandes artistas.