A atriz Vera Barreto Leite Valdez olha para uma das galerias do Teatro Oficina e lembra o dia em que Zé Celso Martinez Corrêa observava, do elevado, a sua tradução de Henriette Morineau, a madame do teatro, em uma das montagens de “Cacilda”. No espetáculo, o grupo encenou a vida e a obra de Cacilda Becker, com a participação de outros artistas ilustres.
Na memorial de Vera, o olhar do companheiro era de pasmo. A ex-modelo de Chanel e um dos maiores encenadores do teatro brasílio eram amigos desde a dez de 1960, trocavam afetos e também protagonizavam muitas brigas.
“Éramos safados, malandros. O Zé era um puta malandro. Malandro esperto”, diz Vera. “Tenho a maior pasmo e uma alegria por nossas brigas. Nelas estavam a intimidade, a amizade”.
Dez meses depois a morte do parceiro, vítima de um incêndio no apartamento em que morava, Vera está de volta ao palco revolucionário do Oficina, no Bixiga, região meão de São Paulo. É lá que vai comemorar os 88 anos em um “evento cênico” dirigido por Marcelo Drummond e Aury Porto.
A atriz enfrenta a fragilidade física para dar conta da preparação e revela estar satisfeita com a homenagem que envolve a equipe do Oficina.
“A grande alegria que senti foi ver que todo mundo ficou muito feliz. Isso dá uma gratidão incrível”, afirmou na quarta-feira (22), depois quatro horas de tentativa.
Ela e outras atrizes e atores vão encenar, em três apresentações, a peça “Vozes Humanas”, que entrelaça relações artísticas e afetivas de Vera por meio de uma versão do solilóquio “A Voz Humana”, de Jean Cocteau.
O entrelaçamento é múltiplo. Vera conheceu Cocteau quando era padrão de Chanel, em Paris. Testemunhava os almoços do poeta e dramaturgo com a amiga estilista.
“A Chanel e os amigos dela olhavam para mim porquê uma moçoila ousada, fazendo aquele trabalho com ela, que era uma mulher considerada meio devassa”, recorda.
Anos mais tarde, em “Cacilda”, quando interpretou Morineau, que inaugurou o TBC (Teatro Brasílio de Comédia), em São Paulo, com o solilóquio de Cocteau, Vera sugeriu encarnar o papel que agora a leva de volta à cena teatral.
Segundo Aury Porto, é uma tradução debochada, irônica, às vezes cínica da obra original. “Ela imprimiu isso no texto”, afirma.
E será, também, uma encenação libertária, porquê tudo o que está relacionado ao Teatro Oficina e a Vera.
No tentativa escoltado pela reportagem, a atriz revelou que ficará nua em uma das cenas. E deu uma resposta definitiva sobre a valia de tirar a roupa no teatro.
“É melhor do que permanecer nua para ser torturada. É um grito de liberdade”.
Vera precisou mourejar com a prisão de familiares durante a ditadura militar e conta ter pretérito por uma sessão de tortura, com choques, no dia em que policiais encontraram uma pequena porção de drogas em sua bolsa Chanel. Lidou também com a repreensão e com a intervalo de amigos exilados.
Ao receber o invitação para o espetáculo, a artista veterana imaginou os dois diretores conversando e falando um para o outro: “E a Vera?”. Lembrou da estação em que viveu Madame Morineau, atuando em gaulês, ao lado de Zé Celso, e da frase dele diante de seu trabalho.
“Ficava lá em cima com face de gozo, de prazer”, diz. “Tenho esse apego pela ‘Voz Humana’”.
A atriz não imaginava que o companheiro morreria primeiro. “Sou mais velhinha. Pouca coisa, nove meses”, justifica, sugerindo crer que partiria antes.
“O fantástico é que ele ficou impregnado. Zé está vivo. É muito presente, cada um tem uma história com ele”, conclui.
A peça “Vozes humanas” será apresentada em três segundas-feiras no Oficina, “três celebrações”, porquê diz Marcelo Drummond: 27 de maio e 3 e 10 de junho, sempre às 20h.
Vera quis estar em cena para relatar uma secção de sua história que inclui voga, teatro, cinema, TV, transgressões e muitos amores. “Milhares”, ela diz. Mesmo diante de uma vida rica em experiências e de se manter no teatro aos 88 anos, não vê sentido em ser chamada de ousada ou corajosa.
“Não é coragem, é geração. Fui criada por uma mulher libertária, boêmia, intelectual, safada, malandra, que dava tudo pelo teatro e me ensinou o caminho”, afirma sobre a mãe, a atriz Maria Barreto Leite. “Sempre estive no teatro”.