A série documental “Transgressão da 113 Sul”, disponível no Globoplay, deixa para quem assiste muitas dúvidas e uma única certeza —a capacidade da polícia em fazer asneiras, por incompetência ou intenção criminosa. Os quatro episódios retratam um transgressão bárbaro em Brasília, e todas as bobagens que integram vários meses de investigação.
No dia 28 de agosto de 2009, três pessoas foram mortas num apartamento de luxo na quadra 113 da Asa Sul da capital federalista —José Guilherme Villela, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sua mulher, Maria Roble Villela, e a empregada do parelha, Francisca Promanação da Silva. Os três corpos somam mais de 70 marcas de facadas.
Villela era uma pessoa de destaque nos meios jurídicos de Brasília, tendo atuado na resguardo do ex-presidente Fernando Collor no processo de impeachment. A investigação de seu assassínio passaria por três delegacias diferentes e hoje, 16 anos depois, resulta uma pena de mais de 60 anos de prisão para sua filha, Adriana Villela, apontada uma vez que mandante do transgressão. Ela recorre da decisão em liberdade.
Mais do que relatar o que já foi divulgado sobre o caso, a série é praticamente uma novidade investigação. O repórter Reynaldo Turollo Jr., roteirista da série, conta que a perspectiva inicial era de racontar a história de uma assassina fria, que teria encomendado o transgressão para permanecer com quantia dos pais. Mas tudo mudou de rumo. E vídeos gravados dos interrogatórios e depoimentos passaram a guiar a narrativa.
“No processo escrito, não tem menção aos vídeos. Os advogados de Adriana nos informaram que só foram disponibilizados para eles no sétimo dia do julgamento, dois dias antes de terminar”, diz Turollo. “Não foi preciso que as defesas da Adriana e dos mandantes do transgressão falassem com a gente, porque nós já levantamos várias questões a partir da nossa própria investigação sobre esses vídeos.”
O que se vê são inúmeros depoimentos de Leonardo Campos Alves, ex-porteiro do prédio em que o parelha Villela morava, e seu sobrinho, Paulo Cardoso Santana, presos uma vez que executores. E aí começam a surgir as irregularidades cometidas pela polícia. Há uma clara indução a que eles alterem seus depoimentos iniciais, de que foram ao apartamento para roubar, para a mudança de latrocínio para transgressão de encomenda, quando passam a incriminar Adriana.
“Havia uma percepção que Adriana Villela era a Suzane Richthofen de Brasília. Não é zero parecido. A Suzane é uma assassina confessa”, afirma Gabriel Tibaldo, repórter que conduziu a apuração com Turollo. “Eu tenho certeza de que o transgressão da 113 não teve tanta divulgação na prelo por desculpa das patacoadas que a polícia criou.”
E não foram poucas. A mais bizarra, que até serve uma vez que um refrigério cômico na narrativa obviamente pesada da série, é uma delegada que acreditou numa vidente que apontou a ela o endereço de três homens que teriam cometido os crimes. Em prova gravado em vídeo, a vidente diz que o parelha Villela está ao lado dela naquele momento.
As prisões foram efetuadas, e a delegada plantou uma prova na lar de um dos acusados. Depois eles foram liberados, e a delegada, afastada. O mais engraçado é que hoje a vidente tem uma empresa de caça-fantasmas, que usa um logo copiado dos “Ghostbusters” do cinema!
Mas existem muito mais peças bizarras no quebra-cabeça. Há um varão que escreve uma missiva contando que Adriana era a mandante do transgressão e esconde essa missiva dentro de um fosso numa herdade em Minas Gerais! E ele escreveu a denúncia a pedido de um procurador!
Em termos jurídicos, o mais inusitado —os verdadeiros executores foram descobertos por uma conversa informal dentro de uma prisão. E, quando isso aconteceu, Adriana já estava denunciada pelo Ministério Público uma vez que mandante do transgressão. “Eu pesquisei e não encontrei casos em que mandantes foram apanhados antes de quem executou”, diz Turollo. “A polícia sempre chega primeiro em quem cometeu o transgressão e a partir daí descobre o mandante.”
E, depois de falarem durante meses que cometeram os assassinatos em dupla, Leonardo e Paulo trouxeram para a investigação o camarada Francisco Mairlon. Segundo Leonardo, ele teria subido ao apartamento. Incluído na cena anos posteriormente o transgressão, seu nome não apareceu nas reportagens sobre o ocorrido. “Mairlon está recluso há 15 anos, esquecido. O foco é a Adriana. Ele não está no processo, não está nas matérias da prelo”, conta Tibaldo.
Em um vídeo que está na série, Paulo dá entrevista recente à ONG Innocence Project, na qual diz que Mairlon é puro e que sua incriminação foi forjada. A resguardo de Mairlon procura agora sua indulto. E Paulo também negou as acusações contra Adriana, que aguarda em liberdade o julgamento de seu recurso no Superior Tribunal de Justiça, marcado para 11 de março.