Numa entrevista que fiz com Alcione há alguns anos, ela arriscou uma explicação, também sábia e simples, para seu apelo popular. Disse um tanto porquê: “Quando eu esquina que sou a loba, eu sou. A mulher que me ouve nem sempre é, mas naquele momento, enquanto me ouve trovar, ela se torna a loba por alguns minutos”.
Um tanto semelhante pode ser dito sobre la loba colombiana, she wolf, a cantora Shakira. Obviamente essa não é a única chave para entendê-la —ou mesmo para entender Alcione. Mas é inegável a força do apelo desse empoderamento que se mostra desde o nome da turnê que estreou na noite desta terça (11) no Engenhão, no Rio de Janeiro, e que na quinta (13) chega ao Morumbis: “Las Mujeres Ya no Lloran World Tour”. Na cobertura do álbum que deu origem à turnê, as lágrimas dela viram diamantes —ou seja, numerário, luxo, em suma, felicidade ou ao menos a ostentação de.
É mais do que a simples representatividade, portanto —é uma uber representação de certa figura feminina contemporânea. Em bom português, um mulherão da porra, que sustenta a personagem ao longo das duas horas de espetáculo de altos níveis de técnica, sensualidade, paixão e discursos de drama e de superação.
A primeira aparição de Shakira no enorme telão nivelado que ocupa toda a extensão do palco confirma essa teoria de supermulher. Uma Shakira gigantesca, desenhada em computação gráfica, caminha pelas dunas de um deserto, fazendo estrondo a cada passo. Pouco depois, ela é engolida pelo solo, renascendo dele com os mesmos óculos escuros com o qual, agora já em tempo real, caminha em direção ao palco, num galeria pelo meio do público, cercada de pessoas com uma roupa prateada semelhante à dela.
Leques de arco-íris, cartazes (“Shakira, depois de 16 anos me separei para estar cá”) e gritos saúdam a cantora. Antes da primeira música, ela se dirige à plateia em português: “É um prazer estar cá de novo com vocês. Estou tendo pequenos problemas, não escuto muito (diz, apontando para seus fones). Vamos tentar arrumar isso primeiro pra poder oferecer o show que vim oferecer pra vocês”. Em inglês, ela completa: “É o primeiro show, acontece”. Minutos depois, explica sorrindo que tinha esquecido de vincular o equipamento.
“La Fuerte”, do mais recente álbum, abre o show em envolvente futurista, prateado, com uma dança um tanto robótica. No som, a plateia é apresentada ao grave que faz tremer o Engenhão ao longo de todo o show.
A Shakira do horizonte é exclusivamente uma das muitas Shakiras que se alternam no palco freneticamente. Em “Girl like me”, surge a hot latina, com o telão alternando bandeiras de Brasil, México, Argentina e Colômbia e outros países vizinhos. Logo depois, em “Inevitable”, ela assume a rockstar, violão em punho. Em “Addictecd to You”, ela bate tambor. Em “Ojos Así”, é dançarina do ventre – único momento em todo o show em que o som falhou por alguns instantes.
A loba se manifesta a primeira vez pelo lado maternal da fera, em “Acróstico”, que ela canta com os filhos – eles participam no telão em vídeos gravados. Até uma Shakira sereia se manifesta, novamente em animação do dedo, antes do medley “Despensa vacía/ La bicicleta/ La torturra” – na performance do medley reggaeton, ela explora os movimentos de quadril que são uma assinatura. E pilota uma bicicleta feita pelos corpos musculosos de seus bailarinos homens.
Em outro momento do show, a figura masculina também é representada de forma patética, porquê androides defeituosos —que ela tenta consertar com um enorme soldador, mas não consegue e desiste. É uma das muitas piscadelas de empoderamento feminino, que ela escancara na fala antes de trovar “Don’t Bother”, de 2005.
“Sofri nos últimos anos”, disse, referindo-se a traição do jogador Piqué, que determinou o termo do consórcio deles. “Mas aprendi que as quedas não são o termo, mas o prelúdios de um voo mais superior. Nós as mulheres voltamos das quedas mais sábias, mais duras, mais fortes. Se queremos chorar, choramos. Mas se não queremos, faturamos. Nessa próxima música fiz umas mudanças na letra. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência”.
Foi a deixa para o público. Antes que ela começasse a trovar, a plateia puxou o coro: “Ei, Piqué, vai tomar no cu!”.
A despeito do persistente subtexto —no caso, texto mesmo de asserção sobre o ex, o repertório de Shakira reunido ao longo de três décadas se mostra consistente e variado em dinâmicas —latinas, árabes, roqueiras, com diferentes referências da cultura eletrônica. No show, ela sabe explorar essas dinâmicas em diferentes situações —chega a trovar do camarim, porquê acompanhamos pelo telão— e configurações do palco, essencialmente do dedo.
Carismática, sem afetação e parecendo estar sinceramente feliz de estrear no Brasil (“país que abriu as portas pra mim quando eu era uma moço”), ela tem próprio acolhida da plateia quando tangencia sua história pessoal, de separação e superação.
“Quantas solteiras tem cá? Eu sou solteira. Somos muitas. Você pode ser feliz solteira ou casada. Contando que se sinta livre. Porque o paixão pelo outro é muito bonito. Mas é mais bonito o amor-próprio”, diz, antes de trovar seu mais recente single, “Soltera”, e fazer pole dance num poste que corta no meio um grande S (ou $) no cenário.
A maior surpresa viria na reta final do show, quando em formação acústica e intimista no pequeno palco projetado na direção da plateia, ela cantou “Peito África”, de Chico César (“Uma música que esquina pros meus filhos antes de dormir, e eles adoram”).
A despeito da recepção não tão calorosa, foi bonito o vislumbre de uma intimidade real, para além da construção da personagem. Mais ainda com uma mulher latina entoando uma cantiga que trata de maneira tão generosa dos efeitos da diáspora – a despeito de sua violência de origem.
O queimação no palco, no telão e, metaforicamente, nos quadris, anunciou o aquecimento para a reta final do show, com “Whenever, Wherever”. Na sequência, veio a celebração solar de “Wala Waka”.
Shakira retorna ao palco para o bis depois de se projetarem no palco “os 10 mandamentos da she wolf” —porquê não competir com outras da espécie. Uma loba enorme —uma estátua, não uma projeção do dedo – surge no meio do palco, e sob os pés dela a cantora entoa “She wolf”. “Onde estão as lobas esta noite?”, pergunta ela, ecoando em alguma medida a fala de Alcione que abre leste texto.
Veio enfim a irresistível canção-vingança “BZRP Music Sessions #53”, na qual ela ——usando sua terminologia fatura em vez de chorar sobre sua separação. Uma retomada, portanto, noutro registro, da mulher gigante que faz o solo estremecer na animação do início do show. E da que, na cobertura do disco, faz das lágrimas diamantes. Show digno do tamanho que ela projeta publicamente porquê mulher —e que ela sustenta porquê artista.