Acabo de permanecer sabendo, pela própria Folha, que a atriz americana Shannen Doherty, a Brenda da série ‘Barrados no Dança’, morreu neste sábado (13), aos 53 anos.
Soltei um ‘nããão’ elevado e sonoro, que fez meu companheiro espreitar pela janela da sala e me perguntar se eu tava muito.
– Não – consegui manifestar – … a Brenda morreu!!
Não é por saudosismo dos anos noventa. Nem porque eu siga com muito afinco a vida de celebridades.
É porque, uma vez que ela, eu também tive um cancro de seio. Eu também fiquei apavorada, eu também celebrei a vida, eu também acreditei.
Mas, ao contrário da Shannen – eu ainda estou cá.
****
O que define as chances de sobrevivência de um paciente de cancro?
Porquê diz meu pai, “n mais kappa fatores”, que não entram no préstimo dessa pilar. Entre concretos e fluidos, comprovados e hipotéticos, em-estudo, mensuráveis, extrapoláveis, anedóticos.
Shannen foi diagnosticada com cancro de seio em 2015, aos 44 anos.
A partir daí, decidiu compartilhar claramente sua jornada. “É mais fácil viver com cancro se eu sei que estou ajudando pelo menos uma pessoa”, disse, em uma entrevista da estação ao programa televisivo Entertainment Tonight.
Fiquei sabendo de sua história mais tarde, quando eu mesma recebi o diagnóstico, no final de 2017.
Desde portanto, às vezes eu ia no google pra ver o que estava acontecendo com ela; às vezes eu não queria nem ver. Eu mesma estava vivendo uma grande transformação e aprendendo a velejar um mundo de incertezas. Aprendendo a agir em meio a pavores noturnos, a ser possante e sensível ao mesmo tempo, a pedir ajuda, a respeitar meus limites, a entender meus medos, a cultivar mais leveza, a me olhar no espelho, careca e emaciada, com mais mel.
Quando Doherty revelou, em 2020, que o cancro tinha voltado em estágio avançado (“estou petrificada, estou muito assustada”, disse na estação, em entrevista ao programa “Good Morning América”), eu, que estava em remissão (livre da doença) desde 2018, fiz minhas contas.
Quem é paciente sabe do que tô falando.
“Portanto eu tenho uns 5 anos pela frente”, pensei, num átimo de segundo.
Depois des-pensei. Tal é a vida, tal é o cavalo doido do pensamento. Eu medito cada dia pra isso: não pra deixar de pensar, mas aprender a não seguir todas as minhas cavalgadas internas. Que las hay, las ha
Finalmente, em 2023, Shannen anunciou que a metástase tinha chegado ao cérebro. De novo fiz as contas, de novo as desfiz.
Também pratiquei essas matemáticas bestas com outros casos, próximos ou célebres. A cabeça tenta escanear todas as informações disponíveis do envolvente em prol da sobrevivência.
Sim, gente famosa também é de músculos e osso. Também sofre, também morre. Sim, a grana sem incerteza ajuda. Sim, a falta de chegada a um diagnóstico rápido e de qualidade no sistema público de saúde afeta principalmente as populações mais vulneráveis, e isso é uma merda enorme.
E, sim, supra de tudo, o horizonte ninguém sabe – ainda que a morte chegue pra todos.
****
De todas as, hmm, contribuições que o cancro trouxe e traz à minha vida, sem incerteza uma das mais valiosas foi aprender a soltar.
Mais do que um estágio concluído com diploma na parede, é um tirocínio jacente. Não só com pensamentos intrusivos relacionados à doença, mas também com mágoas, medos, culpas, limitações, fissuras, expectativas e frustrações. Comigo, com os outros, com a pemba do trânsito, as coisas uma vez que são.
Soltar abre espaço, abre caminhos. Dentro e fora. Pode ser em tom de folgança, pode ser imperfeito: o soltar-possível. Soltar é também perdoar que nem todo dia a gente está muito, nem todo dia a gente é legítimo, nem todo dia é de brisa e, por sinal, nem todo dia a gente consegue soltar; mas seguimos cá, caminhando.
Acabei de falar tudo isso pra mim mesma enquanto xingava treze gerações dos faraós depois de queimar o almoço de domingo.
E enquanto escrevia essa pilar, angustiada por conta da dificuldade cognitiva que me bagunça o raciocínio desde o tratamento oncológico (e agravada agora com a perimenopausa) e que me faz ler e reler e grafar e reescrever 408538 vezes cada risca, temerosa de estar perdendo o pensamento.
E também quando, ao saber da morte da Shannen, senti um misto de empatia e pânico primitivo aflorando em meu espírito.
A Shannen se foi, nós seguimos. Com a comida queimada, as lágrimas tênues e a imperfeição dos dias, nossas pequenas e grandes cavalgadas. Que sejam leves, e que ligeiro seja o nosso coração.