Um lago de luz, formado por tapume de 20 toneladas de cristais, inunda a galeria Mendes Wood, em São Paulo. Entremeadas à brancura dos minerais, cá e lá, em poças brilhantes, nove esculturas arredondadas em prata emergem porquê pérolas imperfeitas.
Diante da instalação “Deliria Deveras”, de Solange Pessoa, o olhar mal mergulha nas arestas e já flutua entre as formas polidas do metal, atraentes porquê um imã. O jogo entre contrastes não deixa de ser uma sentença barroca da artista mineira. A obra de grande graduação conduz o visitante para um passeio estético à cercadura do sublime.
“Isso cá é o telúrico metafísico”, diz Pessoa em uma conversa ao volta do trabalho. “Eu pensei muito em Murilo Mendes, que é um poeta dos elementos. Tem um poema dele que labareda ‘Mistério volátil’. Cá é um subterrâneo que voa, suspende. Tem uma coisa que é do fundo, mas que também é do cimeira, que eleva”.
Se a imagem lembra as de um sonho, não é por eventualidade. A artista, que produz desde o final dos anos 1980, diz ter um pé no surrealismo. “Não no surrealismo do relógio derretendo, mas naquele mais grande, que abrange consciência, sexualidade, animismo, nesse caminho”, afirma. “Meu trabalho é herdeiro das experiências sensoriais e da fenomenologia”.
Sua fala resume, em manifesto sentido, a teoria da exposição que procura em camadas do subsolo e do inconsciente uma conversa de longos silêncios contemplativos. “Funduras”, individual que ocupa todos os espaços expositivos do galpão da galeria no bairro da Barra Fundíbulo, é um lugar de profundidades e alquimias.
Porquê o do próprio nome que batiza a mostra. O termo, conta a artista, ecoa em conversas no interno do Brasil para proferir a extensão calculada a partir da superfície. Mas também remete a dimensões desmedidas. Já o poeta português Herberto Helder comparece porquê mais um elemento para a fusão. “Eu vi a termo várias vezes nos poemas dele, um poeta muito querido, poeta da material”, diz.
Minerais porquê pedras, metais e barro, presentes nos trabalhos, ressaltam o diálogo com a materialidade que Pessoa identifica na proximidade com a trova de Helder.
Ao caminhar pela exposição, o visitante encontra formas escuras que lembram rochas. Mais próximo delas, nota que são esculturas em cerâmica, que preservam até marcas do toque que as moldou. Porém, basta um ajuste no orbe ocular para as peças ganharem densidade e contornos de figuras antropomórficas, fechadas em si mesmas, em um silêncio que condena o observador à eterna ignorância de suas essências.
Diante delas, o mistério permanece. Algumas lembram bustos, outras parecem flagrar momentos de indeterminação entre o varão e os animais. Trabalhos com penas e cabelos, materiais que estão na linguagem artística de Pessoa há décadas, lembram a arte plumária indígena ou obras de Tunga (1952-2016), com quem ela reconhece uma poderoso relação.
Mas a melhor associação, afirma, está nas tradições do interno de Minas Gerais e nos santos das igrejas barrocas, que usam perucas feitas de cabelos humanos.
Se esse grupo de trabalhos sugere contenção, as telas da série “Solarengas 2” se entregam a uma natureza vibrante. As obras enormes, em laranja radioso, são pintadas com terreno do concentrado, de uma região no oeste de Minas. As formas, que por vezes lembram as dos recortes de Henri Matisse, são uma ode ao mundo vegetal. Frutas, galhos, folhas, sementes e paisagens surgem em profusão festiva.
Os motivos vindos do mundo proveniente ainda aparecem na sequência de telas menores, da série “Frugívoros”, pintadas com jenipapo e carvão sobre linho. A realização das imagens retém alguma coisa dos desenhos rupestres, evocando formas que emergem de uma trevas primordial. Figurações, quem sabe, de um sonho profundo da Terreno.
A artista de 62 anos começou a lucrar projeção no rodeio da arte há tapume de uma dezena. Professora aposentada da Escola Guignard, da Universidade do Estado de Minas Gerais, onde deu lição a vida toda, Solange Pessoa nunca deixou de produzir, mesmo que suas obras fossem recebidas com estranheza, mas ficou anos sem expor.
“Desenvolvi o meu trabalho em um contexto muito concretista, que é Belo Horizonte, e a arte conceitual não via zero além de si própria. Eles não se interessaram e eu continuei trabalhando. Isso foi ótimo para mim, foi o que me fortificou”, diz sem grandes voltas.
Em 2015, a Rubell Family Collection, uma das maiores coleções de arte contemporânea do mundo com entrada público, comprou sua obra “Catedral” (1990-2015). A instalação é uma cascata de cabelo humano coletado pela artista ao longo de décadas em salões de venustidade da capital mineira.
A compra marcou o início do reconhecimento de sua produção. Em 2022, ela expôs suas criações na Bienal de Veneza e, entre as peças para a mostra, levou esculturas em pedra-sabão, material bastante associado à arquitetura barroca.
Já em “Funduras”, Pessoa desdobra suas realizações artísticas com minerais na série “Verdilitas”, fusões de bronze com a pedra fuchsita. “As formas são muito simples, mas é muito difícil fazer essa união, é uma coisa quase que impossível”, diz. As obras lembram tanto animais marinhos com conchas quanto fragmentos do cosmos, sugerindo o libido em sua poética de explorar as origens da vida no planeta.
Esse universo referencial ainda engloba o vídeo “Delongas”, um registro de João Vargas Penna, no qual a artista faz desenhos em inferior relevo na terreno e os preenche com bronze liquefeito, que aos poucos se solidifica. “O material é a própria transformação, o bronze é da alquimia”, afirma.
Ao ouvir a música de Livio Tragtenberg para o filme, alguma coisa porquê um ressonar da Terreno, nascente repórter evoca o “sono rancoroso dos minérios”, do poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade. A artista de Ferros, cidade mineira próxima a Itabira natal do poeta, concorda: “O subsolo tem um silêncio milenar. As coisas que estão ocultas. Cá, ele vem para a superfície”.