O cineasta Cacá Diegues, morto nesta sexta-feira (14) aos 84 anos, falou sobre ser “inimigo mortal da morte” em entrevista à pilar em 2006. Na quadra, ele estava lançando o filme “O Maior Paixão do Mundo”, protagonizado por José Wilker (1944-2016), que acompanha um varão que tem cancro terminal.
“Eu sou totalmente contra a morte (risos). Eu sou um inimigo mortal da morte. Uma das cenas mais lindas da história do cinema é a de “Gritos e Sussurros”, do [Ingmar] Bergman. Uma mulher está com cancro, grita de dor, suas irmãs brigam, é um inferno. No término, ela está no quintal da morada, as duas irmãs estão correndo, felizes uma vez que há muito não se via. Ela pensa: ‘Não sinto dores, minhas irmãs brincam. Eu talvez tenha vivido a vida toda para viver esse minuto de felicidade’. Mais importante que o conjunto da obra, na vida, é o momento que a gente vive”, disse ele sobre o tema do longa.
A entrevista foi feita na morada de Cacá, no bairro da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro. Wilker também participou da conversa.
Questionado sobre o que tinha de autobiográfico no longa, o cineasta respondeu: “O filme fala de situações geracionais. Aproveitando, tenho a declarar o seguinte: eu detesto o filme ‘Invasões Bárbaras’. Eu odeio. É um filme que renega todas as utopias que as pessoas viveram ao longo do tempo. E também aquela coisa do ritual sacralizado da morte… a morte é uma coisa selvagem, terrível, inadmissível, que só pode ser vivida com sofrimento, e não com aquela teatralidade superior. Nosso filme também trata de um varão que vai morrer, só que é exatamente o oposto”.
Cacá dirigiu clássicos do cinema brasílio uma vez que “Bye Bye, Brasil”, de 1980, e obras de vanguarda da filmografia vernáculo, uma vez que “Ganga Zumba”, de 1964.
Na entrevista à pilar em 2006, o cineasta comentou a recepção de “Bye Bye Brasil”. “Metade dos críticos diziam que o filme era sobre uma cultura que terminava; a outra, que era sobre um país que começava. E as duas coisas eram verdadeiras. Portanto a ilusão de que você controla o resultado do seu filme eu já perdi há muito tempo”, afirmou.
Na conversa, o cineasta também falou sobre a escol brasileira, televisão e política. “Outro dia eu tive uma discussão com uma pessoa muito conhecida dessa superfície da ‘escol branca’, que falou: ‘Mas vocês só fazem filme sobre favela, sobre violência.’ A escol não gosta de ver o Brasil na tela, não gosta de se ver na tela. A classe média, que tem uma cultura de shopping center, também. Têm vergonha de si mesmas, porque o padrão delas está em Miami, a base cultural está em Orlando”, afirmou.
“Mas o povo brasílio gosta. A romance descobriu isso. E, quando o filme vernáculo passa na TV, ele tem um resultado igual à produção normal da TV Mundo. “O Varão Que Copiava” fez 41 pontos. […] Eu acho que a televisão brasileira, de patente modo, está ajudando a saber o Brasil.”
A entrevista foi feita dois meses antes das eleições daquele ano. José Serra foi eleito governador de São Paulo e, na corrida à Presidência, o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin competia com Lula, que foi reeleito.
“Eu não tenho vontade de votar em nenhum dos candidatos. Nenhum. Mas eu não vou votar em branco, porque é medo. Essa questão da depravação foi uma desengano muito grande com o governo atual”, disse Cacá, referindo-se ao escândalo do mensalão. “Mas quero deixar simples que esse preconceito, esse ódio social em relação ao Lula é intolerável e que não compactuo com isso. É mais uma faceta do conservadorismo da escol brasileira.”
Leia, inferior, a íntegra da reportagem:
Em setembro, eles chegam às telas de cinemas com o longa “O Maior Paixão do Mundo” —o sexto filme em que Cacá Diegues dirige José Wilker, com quem já trabalhou em “Bye Bye Brasil”, “Xica da Silva” e “Dias Melhores Virão”, entre outros. Os dois receberam a pilar na morada de Cacá, que fica na Gávea, colada à favela da Rocinha, no Rio. Falaram da “tormento e instabilidade” de lançar o novo trabalho, de eleições, de cinema, de esperança -e da falta dela. Inferior, trechos da conversa:
Cacá, esse é o 16º filme de sua curso, e seu, Wilker…
Wilker: Eu já trabalhei em cinquenta e poucos, 56, uma coisa assim. Mas tem filme que eu nego que fiz.
Qual?
Wilker: – Se eu nego… (rindo) Mas eu não posso mais negar porque de vez em quando passa no Via Brasil.
Cacá: É um transe. Em cinema às vezes a gente se “esquece” de um filme [que fez], né? E o Via Brasil nos faz lembrar.
Que filme você vê hoje e gostaria de ‘olvidar’?
Cacá: Eu não vejo muito os meus filmes, não. Procuro me desvincular para ter uma espírito ligeiro para fazer o próximo. Eu faço meus filmes com a mesma euforia de um primeiro e a mesma urgência de um último filme.
E quando chega a hora do lançamento…
Cacá: Fico cada vez mais amargurado. Quando você é jovem, se acha um Deus. Portanto quem não gosta do seu filme é um imbecil. Imagine! É uma besta. Mas você vai ficando mais velho, vai compreendendo que não é Deus…
…E que o imbecil pode ser você…
Cacá: (Rindo) .. e que é capaz até de os outros terem razão. A instabilidade aumenta.
Wilker: Eu tenho pânico. Eu tenho a sensação de ser… inadequado. Eu não acho que seja adequado para coisa nenhuma. Quando eu fui fazer “Os Inconfidentes” com o Joaquim Pedro [de Andrade, diretor do filme], eu disse: “Joaquim, você é louco. Eu não me pareço com o Tiradentes.” E ele falou: “Não, faceta. O Tiradentes era um jovem varão zangado”. Aí eu me entreguei totalmente. No meio do filme o Joaquim descobriu que o Tiradentes não era loiro. A gente comprou uma tinta numa farmácia em Ouro Preto e ficamos numa pia de hotel pintando o cabelo. Pintamos tão muito que eu fazia assim [mexe a cabeça] e o cabelo caía todo. Tiradentes foi loiro até a metade do filme, depois ficou mulato.
O FILME
Cacá: Quando eu fiz “Bye Bye Brasil”, metade dos críticos diziam que o filme era sobre uma cultura que terminava; a outra, que era sobre um país que começava. E as duas coisas eram verdadeiras. Portanto a ilusão de que você controla o resultado do seu filme eu já perdi há muito tempo. “O Maior Paixão do Mundo” é o que estiver na cabeça de cada pessoa que for ver o filme. A teoria foi fazer um filme sobre um astrofísico bem-sucedido, rico, mas solitário, que passou a vida tentando entender os mecanismos de controle do universo e abdicou da vida que estava ao lado dele. De repente ele redescobre as emoções, os sentimentos. Minha filha, Flora, disse [sobre o filme] que o maior paixão do mundo é o paixão à vida.
Wilker: As minhas filhas [de 26 e 19 anos] começaram a escoltar a minha curso muito recentemente. A gente até fez uma retrospectiva em morada de filmes que eu fiz. Depois de “O Maior Paixão do Mundo”, elas me disseram que passaram a me ver de uma forma dissemelhante. Elas não sabiam que eu era desse tamanho. Eu fiquei entre orgulhoso e assustado. Porque você tem que responder ao tamanho, né?
A MORTE
A morte está muito presente no filme. O personagem principal tem cancro e vai morrer.
Cacá: Eu sou totalmente contra a morte (risos). Eu sou um inimigo mortal da morte. Uma das cenas mais lindas da história do cinema é a de “Gritos e Sussurros”, do Bergman. Uma mulher está com cancro, grita de dor, suas irmãs brigam, é um inferno. No término, ela está no quintal da morada, as duas irmãs estão correndo, felizes uma vez que há muito não se via. Ela pensa: “Não sinto dores, minhas irmãs brincam. Eu talvez tenha vivido a vida toda para viver esse minuto de felicidade”. Mais importante que o conjunto da obra, na vida, é o momento que a gente vive.
Wilker: Nunca tinha pensado [na morte], até que li “Todos os Homens São Mortais”, da Simone de Beauvoir. O conde Fosca vira eterno e é um desespero: os amores que ele tem acaba, e ele continua. De repente me dei conta de que existem coisas que dão sentido à vida. E que a sua perpetuidade é isso. É lindo. Um companheiro me disse: “Você já fez um monte de filme, faceta. Tem a perpetuidade garantida”. Tô apostando nisso aí.
O que é autobiográfico em ‘O Maior Paixão do Mundo’?
Cacá: O filme fala de situações geracionais. Aproveitando, tenho a declarar o seguinte: eu detesto o filme “Invasões Bárbaras”. Eu odeio. É um filme que renega todas as utopias que as pessoas viveram ao longo do tempo. E também aquela coisa do ritual sacralizado da morte… a morte é uma coisa selvagem, terrível, inadmissível, que só pode ser vivida com sofrimento, e não com aquela teatralidade superior. Nosso filme também trata de um varão que vai morrer, só que é exatamente o oposto.
O BRASIL
Wilker: Eu acho que o Brasil deu patente sim. Eu dei patente. Eu sou honesto, vivo do meu trabalho. Eu não vejo o Brasil pelas figuras notáveis da política que tentam entortá-lo. O Brasil passa por um momento auspicioso. De repente, o Paulo Maluf foi recluso. O que se apresenta uma vez que perspectiva é muito melhor do que há 30 anos.
Cacá: É simples que a gente sonhou com um Brasil que não é esse que “tá” aí, um Brasil que não aconteceu. A gente acreditava que a história era um trem num trilho que andava numa determinada direção. E não era. A história é uma senhora bêbada tropeçando por aí.
Eu me angustio muito com as perspectivas. A miséria no Brasil assombra.
A ELITE
Cacá: Outro dia eu tive uma discussão com uma pessoa muito conhecida dessa superfície da “escol branca”, que falou: “Mas vocês só fazem filme sobre favela, sobre violência.” A escol não gosta de ver o Brasil na tela, não gosta de se ver na tela. A classe média, que tem uma cultura de shopping center, também. Têm vergonha de si mesmas, porque o padrão delas está em Miami, a base cultural está em Orlando. Mas o povo brasílio gosta. A romance descobriu isso. E, quando o filme vernáculo passa na TV, ele tem um resultado igual à produção normal da TV Mundo. “O Varão Que Copiava” fez 41 pontos. (…) Eu acho que a televisão brasileira, de patente modo, está ajudando a saber o Brasil.
Wilker: Quando a gente fez “Bye Bye Brasil”, eu saí das filmagens com uma sensação esquisita: eu achava que esse país não resistiria muito tempo um só. Que se dividiria em uns três ou quatro países. Eu achava que não juntava o sul com o setentrião, com o nordeste, o centro-oeste. A tendência era que a gente se separasse. [Rindo] Meu ideal seria separar a Barra [da Tijuca], mas tudo muito.
Cacá: A Barra poderia virar um Liechtenstein.
Wilker: É, tem que ter passaporte para entrar. Mas aí, de repente, por conta do filme, eu descobri que, no ruim e no bom, a TV integrou o país. Ela exibiu o pior e o melhor de tudo e integrou esse país.
Os abismos sociais não acabaram mantendo a existência de pelo menos dois ‘países’?
Wilker: É um país só sim. [pausa] A gente está chegando lá. Finalmente temos um Al Capone.
Cacá: No Rio é muito mais clara essa teoria de país que é um só, mas separado. Outro dia eu estava voltando da praia, e vi dois menininhos, dois pretinhos de 14 anos, no supremo. E uma senhora branca, do Leblon, com seu fruto branco. O menino literalmente pulou no pescoço dela e falou “mãe, olha lá dois pretos”. É um clima de pânico em relação à pobreza.
ELEIÇÕES
Wilker: Atualmente eu sou uma pessoa com uma posição muito clara: eu sou de núcleo com tendência à esquerda conservadora. [risos]
E as eleições?
Cacá: Eu não tenho vontade de votar em nenhum dos candidatos. Nenhum. Mas eu não vou votar em branco, porque é medo. Essa questão da depravação foi uma desengano muito grande com o governo atual. Mas quero deixar simples que esse preconceito, esse ódio social em relação ao Lula é intolerável e que não compactuo com isso. É mais uma faceta do conservadorismo da escol brasileira.
Wilker: Já li em qualquer manual ufanista sobre a valimento desse maravilhoso espetáculo da democracia. Mas eu não tenho mais a menor paciência para essa inflação de oradores de batizado que invadem a nossa vida nesse período [eleitoral], com um exposição tão profundo quanto um pires.
Mas você mantém o voto no presidente Lula?
Wilker: Sim.
CINEMA NACIONAL
Wilker: A gente está muito condicionado com essa coisa de números, quantos espectadores viram cada filme, 100 milénio, 200 milénio. Não é por aí. Tem filmes que, com dez espectadores, cumpriram inteiramente seu papel […] Qualquer política de modificação da nossa verdade passa por uma instalação de mais cinemas no Brasil. A gente inflacionou os shoppings de sala de cinema. Nos últimos anos, o Rio fechou 172 salas de cinema na periferia. E abriu uma. Por outro lado, nunca se viu tanto filme no Brasil quanto hoje, por outros canais que o cinema encontrou para chegar até o público.
Cacá: Hoje os filmes estão em DVD, via desobstruído, fechado. A sala de cinema não é mais a única maneira de passar os filmes.
CELEBRIDADES
Wilker, gostaria que você falasse mais do seu projeto de produzir o curso ‘De ator a padrão’, uma vez que disse antes de a entrevista encetar.
Wilker: [Gargalhadas]
Cacá: [Rindo] Se f., Wilker!
Wilker: Não vou fazer esse curso, não. Mas ele é oportuno para o momento atual. Existem atores e desinibidos. E nessa coisa do mercado, de carência de gente novidade, se tem investido muito nos desinibidos em detrimento dos atores. As pessoas acham que um ator é uma coisa que acontece assim, né [estala os dedos]? Porque a muchacho imita os outros, é a gracinha da família, vai lá e faz dancinha na boca da garrafa, as pessoas confundem isso com “acting”, com simbolizar. No curso “De ator a padrão”, o faceta começa ator, vai piorando, piorando, até virar padrão. Tem uma definição primorosa, de palavras cruzadas. Ator: “Varão que sabe mentir com quatro letras”.
Cacá: [Rindo] Muito bom!
Wilker: Hoje, as pessoas colocam o sucesso antes do trabalho. É muito mais importante comprar notoriedade que permanência. Eu tenho pasmo por atores uma vez que Paulo Autran, Sérgio Brito, Raul Cortez, Juca de Oliveira, caras que permanecem porque aprenderam o “métier”, aprenderam o dominar a profissão.
com KARINA MATIAS, LAURA INTRIERI e MANOELLA SMITH
