Strauss Viu Sentido Da Morte Nas 'quatro Últimas Canções'

Strauss viu sentido da morte nas ‘Quatro Últimas Canções’ – 05/11/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Ainda guardo o momento em que o maestro Isaac Karabtchevsky explicou-me tudo: “Enquanto falo com você, penso num acorde de Richard Strauss que visualizou o sentido da morte. E, logo quando a cantora pronuncia a vocábulo ‘morte’, o flautim faz um trilo, porquê se a vida não terminasse ali e continuasse em outro projecto. A vida é aquele flautim lá no fundo.”

Karabtchevsky, que comemora os seus 90 anos no mês que vem, referia-se, naquela entrevista, às “Quatro Últimas Canções”, obra escrita pelo compositor germânico um ano antes de morrer, em 1949, e que agora será apresentada no Theatro Municipal de São Paulo, com a soprano argentina Carla Filipcic e a Orquestra Sinfônica Municipal (OSM), sob a regência de Roberto Minczuk. Não se sabe ao manifesto se a intenção do compositor era ortografar um ciclo de canções.

Ao se encantar por poemas, Strauss logo os transformava em Lieder, termo da língua alemã que designa a forma músico. Assim aconteceu com “Im Abendrot”, ou no ocaso, texto de Joseph von Eichendorff, que se tornaria a quarta e última música do ciclo. É nela que ouvimos os tais trilos, quatro vezes incidentes numa alongada coda. Ao fundo, a família das cordas, em compassos também alongados, parece suspender a melodia em sucessivas pausas.

Portanto, surgem os flautins, consumando a transfiguração. “Ó silêncio imensa e tranquila/ tão profunda no ocaso! Porquê estamos cansados dessa jornada / será isso já a morte?”, diz a última estrofe do poema, antes da coda. Ao que indicam os textos, Strauss imaginava a finitude porquê um repouso, em que o ser encontrava, enfim, a silêncio e a plenitude místico. Ou, em última instância, o velho músico já estava resignado com seu iminente desaparecimento.

A mesma teoria se estende às três canções anteriores, extraídas de poemas de Hermann Hesse, responsável do romance “O Lobo na Estepe”, de 1927. A música “Frühling”, primavera em português, tem introdução tempestuosa, que em zero se combina à florida estação do ano. Já o texto de “September”, setembro em germânico, discorre sobre um verão que “sorri, surpreso e lânguido”, em um jardim enlutado. No quina da solista, as sucessivas ligações das notas culminam num melisma, técnica por vezes vulgarizada, que rutila inextricável da melodia.

Na sequência, “Beim Schlafengehen”, ou ao adormecer, dimensiona, de maneira mais explícita, a associação entre morte e serenidade. O primeiro violino reina ainda mais em meio à orquestra. Seu solo é perseguido pela cantora, porquê num entrelaçamento de vozes. Strauss não viveria para a ver a estreia de suas “Quatro Últimas Canções”, num concerto em Londres, no ano de 1950, com a norueguesa Kirsten Flagstad. Ainda que seja um dos ciclos de Lieder mais amados em todo o mundo, a historiografia vê, nessa obra, um Strauss menos radical.

Ao mesmo tempo, as canções são caracterizadas por uma tensão harmônica e uma estrutura descentrada. As dissonâncias são também literárias: residem no jardim enlutado ou no verão lânguido. O maior contraste, porém, é entre o velho e o jovem Strauss. Em 1891, ele mesmo regeu o poema sinfônico “Morte e Transfiguração”, a descrição da morte de um artista. É uma música soturna e grave, sem aqueles gracejos dos flautins.

Todavia, é notável a permanência da teoria de transfiguração, (“Verklarüng”). No cima Romantismo, a imaginação ateia de Strauss permitia a crença em uma passagem à evo, em que a morte tivesse, noutro projecto, uma forma glorificada. Tanto que Strauss, seis décadas depois, incluiu uma passagem de “Morte e Transfiguração”, mais conhecida porquê o tema da transfiguração, em “Im Abendrot”. O responsável da ópera “Elektra” acertava as contas de sua vida, dando adeus à era romântica.

No ano que vem, a Osesp abrirá a sua novidade temporada com as “Quatro Últimas Canções”. A sul-africana Masabane Cecilia Rangwanasha, uma das cantoras do momento, será a solista.

Ao final daquela entrevista, Karabtchevsky mostrara um conhecimento totalizante da partitura, que regeria no dia seguinte, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Assim porquê Strauss, o maestro identificou em seu pensamento músico a medida da existência humana. Apaziguado, Karabtchevsky pôs a mão em meu ombro e disse “shalom, fruto”. A sentença em semita significa silêncio. Mas pode ser um adeus.

Folha

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