Uma compositora considerada tão importante para o pranto quanto Ernesto Nazareth. É reverenciada por músicos uma vez que Egberto Gismonti, que sempre se impressionou com sua polirritmia e destreza ao piano, mormente com a mão esquerda.
Foi apresentadora de rádio e TV e passou murado de dez anos consecutivos no ar, nas décadas de 1950 e 1960.
Ela viajou pelo continente americano inteiro exclusivamente com a filha, divulgando o cancioneiro brasílico em espetáculos por cinco anos ao longo da dezena de 1930, tendo obtido uma espécie de bênção de Getúlio Vargas em pessoa para fazê-lo.
Uma mulher que, farta de sua vida de casada com um marido remendado à revelia, separou-se dele e passou a dizer-se viúva, mesmo com o digníssimo vivo.
Uma mãe que, malgrado toda a valor de sua obra músico, seja uma vez que autora, seja uma vez que tradutor, decidiu seguir a vida doméstica de sua filha em cidades de quase nenhuma sentença músico, primeiro em Marília, em São Paulo, depois em Goiânia, nos anos 1950.
O sujeito dos cinco parágrafos supra é o mesmo: a pernambucana de Jaboatão dos Guararapes Amélia Brandão (1897-1983), ou Tia Amélia, nome artístico que lhe foi pespegado já tardiamente, em um de seus incontáveis retornos à cena músico.
Sabe-se pouco sobre ela –não há registro em qualquer suporte dos programas que ela levou por dez anos em emissoras de TV, mas o silêncio em torno da figura começou a ser quebrado. Primeiro em 2020, com a gravação de “Tia Amélia para Sempre”, do pianista, compositor e apreciador Hercules Gomes, disco com 14 faixas que saiu pelo selo Sesc e teve nomes pesados a seguir o pianista capixaba. Nailor Proveta, no clarinete, e Henrique Araújo, no cavaquinho, entre eles.
Neste ano, o livro “Tia Amélia”, da produtora músico Jeanne de Castro, veio a lume pela especializada Tipografia Músico.
Jeanne, que produziu o disco de Gomes e que não havia escrito uma biografia –chegou a fazer um curso para isso com Lira Neto, biógrafo de Maysa, Padre Cícero e Getúlio Vargas–, diz na introdução da obra que ouviu do jornalista Zuza Varão de Mello que a história da Tia Amélia era “muito mais incrível que sua música” e “assumiu o risco” de confirmar a hipótese de Zuza.
A autora disse que a principal particularidade de sua biografada era o destemor.
A invenção da viuvez, a viagem pelos países americanos, a própria reclusão voluntária e a atuação sempre independente, um pouco difícil, talvez mesmo inaudito, para uma mulher no Brasil da primeira metade do século 20, justificam a definição.
Ser destemido não implica descurar da própria memória, mas Tia Amélia não se preocupou em organizar sua obra para eventual usufruto da posteridade. A tarefa tampouco pareceu importante para sua filha Silene, que lhe acompanhou na turnê nos anos 1930; os outros dois filhos morreram precocemente.
Jeanne começou do zero, tateando em hemerotecas e arquivos, quase sem ajuda de herdeiros. Um documento muito emblemático, uma epístola que a artista escreveu a Mário de Andrade em 1938, de Novidade York, no final de sua turnê com Silene, apresentando-se uma vez que folclorista para o jornalista e expressando seu libido de “possuir o Samba rústico paulista e outras composições de tão autorizado rabino”, epístola que não mereceu resposta de Mário mas foi coligida no montão do jornalista hoje mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, causou surpresa quando a autora disse tê-la encontrado.
“A família não tinha certeza nem mesmo que Amélia e Silene haviam viajado. Quando eu descobri a epístola para o Mário, uma neta me disse ‘Portanto era verdade’”, diz Jeanne.
Um dos expedientes que Hercules Gomes utiliza para apresentar Tia Amélia para as novas plateias é descrever a historieta de que Ernesto Nazareth pediu à compositora que não deixasse “o pranto morrer”. Segundo Jeanne, o pedido foi feito na própria moradia de Nazareth no bairro Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em agosto de 1930, depois de que Amélia tocou seis tangos do ídolo ao piano.
Nos anos 1950, num dos retornos da compositora, ela foi chamada em reportagem do periódico Radiolândia de “Ernesto Nazareth de saias” –aproximação estilística que talvez só tenha se tornado inapropriada, por ser claramente machista, dias detrás.
Eugênio Davidovich, que escreveu o item para a Radiolândia, entusiasmou-se com a figura insólita da “rebento de 68 anos” –dez anos mais do que sua idade verdadeira–, a tocar numa das muitas boates esfumaçadas de Copacabana que viram surgir a nascente bossa novidade. Era o Clube da Chave, que abrigou também um imberbe Tom Jobim.
O biógrafo Ruy Castro, colunista desta Folha, que escreveu a contracapa do livro de Jeanne, disse em um dos lançamentos da obra que ele “deve ser a única pessoa hoje no Rio que conheceu Tia Amélia”, já que, numa curiosíssima coincidência, morou por murado de um ano, dos 10 para os 11 anos de idade, no apartamento de uma tia, mana de seu pai, no Flamengo, que também tinha Tia Amélia uma vez que inquilina. Ruy dizia que a artista ficava “ensaiando o dia inteiro”. “Eu fincava o cotovelo no piano e ficava ouvindo ela”, disse, lembrando ainda que o piano “assombroso” que ela tocava no apartamento é o mesmo da imagem da envoltório do álbum “Velhas Estampas”, de 1959.
Em 1980, Tia Amélia foi convidada pelo selo fonográfico Marcus Pereira, de São Paulo, a gravar um disco pela moradia, o “A Benção, Tia Amélia”. Ela escolheu doze composições próprias, todas recentes.
O evento deu azo para novidade vaga de entrevistas com a artista, que parecia sempre surpreender os jornalistas por suas façanhas em idade tão provecta –idade que era normalmente errada para cima.
No Jornal da República, em 15 de janeiro de 1980, com o título “Os invejáveis 86 anos de Tia Amélia” —tinha 83—, reportagem não assinada menciona encontro com Getúlio Vargas em Teresina, em que ela teria seduzido o novo presidente com a realização ao piano de modinhas gaúchas. A contrapartida mais tarde teriam sido “cartas de apresentação” oficiais a vários países, documentos com as quais ela teria viabilizado sua turnê folclorista com Silene.
Em 1977, na Folha, Tia Amélia mereceu um “pingue-pongue” em material de envoltório da Ilustrada. Feita pelo jornalista Sergio Gomes. A entrevista tem revelações interessantes. Ela “não casou de novo” porque, “viúva com 25 anos, não gostei mais de ninguém”. E, relembrando sua puerícia, a artista dizia ser “campeã da revolta”. Tudo porque crianças já aos 4 anos estudavam música uma vez que qualquer adulto –”uma judiação”. “Não sei uma vez que não enlouqueci.”
Com o título “Tia Amélia –84 anos levante ano”, o jornal acrescentava quatro anos à idade da artista. O encontro com Getúlio também ganhou outra versão, uma apresentação que o logo presidente não viu em Belém e uma audiência “no dia seguinte” com o gaúcho em sítio não especificado.
Um show no próximo dia 12 no Cine Teatro Samuel Campelo, mantido pelo Sesc em Jaboatão dos Guararapes, cidade natal de Tia Amélia, reunirá o time que lançou o disco “Tia Amélia para Sempre”. Sob a liderança de Hercules Gomes, outros dez músicos deverão reproduzir as músicas da compositora pensadas para distintas formações e arranjos —piano solo, piano e filarmónica e piano e regional de pranto.
O evento deve preceder o lançamento do livro, que contará com a autora e também com Maria José Sampaio Brandão a autografá-lo. Maria José, casada com um dos sobrinhos diretos da compositora, ajudou Jeanne na pesquisa.
Muito por conta do disco de Hercules, que provocou a reunião dos familiares de Tia Amélia para safar direitos autorais, há murado de um ano foi fundado o Instituto Tia Amélia, em Recife, hoje presidido por Maria José. A entidade procura recursos para viabilizar o restauro da moradia onde a artista viveu em Jaboatão. O imóvel é tombado pelo patrimônio histórico municipal e pleiteia também entrar no livro do trambolhão pernambucano.