O tema medial desta 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes sugere um tanto um pouco misterioso ao interrogar “Que cinema é esse?” Pode fazer pensar no cinema independente que se mostra em Tiradentes, ou no cinema brasílico em universal, ou em alguns filmes em pessoal.
Nascente sábado (25), dia de fenda, já deu algumas respostas a essa questão angustiante. Bruno Safadi exibiu o “filme de pandemia” que fez com Ricardo Pretti, “Para Lota”. Trata-se de um longo, enorme projecto noturno do Aterro do Flamengo, no Rio, feito durante a reclusão da pandemia.
Diz Safadi que eles ficaram com o projecto entalado, sem saber que tramontana lhe dar, até desenredar as cartas de Lota de Macedo Soares ao seu camarada e governador do portanto estado da Guanabara, Carlos Lacerda. Lota foi figura decisiva para que o Aterro se tornasse o parque que se tornou. Convocou engenheiros, arquitetos, paisagistas a termo de ocuparem o aterro com uma paisagem ao mesmo tempo deleitável e dedicada ao divertimento público.
Lacerda é a contraparte política da história. Ele, que tinha zero menos que ambições presidenciais naquele momento, devia tourear os jornais, os políticos, as picuinhas e dar condições a Lota de gerar uma grande obra urbanística. Por vezes esbarravam em preconceitos. Por exemplo, havia quem detestasse de colocar cabines para troca de roupa no sítio.
Lota reclamava: portanto teremos um lugar para as pessoas passearem, jogarem futebol, irem à praia, fazerem piquenique. Só não podem trocar de roupa. Os problemas se avolumam tanto quanto o libido de Lota. Acompanhamos o jogo entre as diversas instâncias envolvendo o verosímil e o menos verosímil. Zero parece impossível a Lota, a não ser por fraqueza de Lacerda (uma violenta epístola trata desse paisagem).
O jogo político se insinua mesmo em dimensão pátrio. Lota critica Brasília: enorme, feia e má (ou um tanto assim), acha. Mas pode usá-la para satirizar o governador: Juscelino fez Brasília em cinco anos, nós não conseguimos fazer um parque nesse tempo, diz.
Tudo nela diz saudação a uma mistura de positivismo e voluntarismo: quer um parque não para os ricos, mas para os pobres, para a pequena classe média, aqueles que vêm de longe, que não têm o que fazer aos domingos.
Tudo muito muito. Mas quem verá esse filme? Quem terá paciência para seguir por 85 minutos essa leitura de cartas (a correspondência segue, no final, com Rachel de Queiroz) nos instrui sobre o que seja sonhar com o Brasil, suas ambições e limitações, grandeza e miséria, mas também tem um lado extenuante.
Logo estamos de volta ao paradoxo de um cinema que pode levar 4 ou 5 milhões de espectadores a exclusivamente um de seus filmes —já levou mais, 10, 12 milhões, nem faz tanto tempo—, mas também pode não levar mais de 5 milénio ou 10 milénio espectadores.
Há dois tipos de cinema brasílico: um, mercantil, outro, experimental. O que os torna assim tão distantes um do outro? À segmento questões de distribuição e publicidade, esse mistério parece corresponder ao que é a cultura brasileira, com suas fraturas e distâncias.
Erico Rassi veio com “Oeste Outra Vez”, que ganhou o prêmio de melhor filme em Gramado nascente ano e nos remete ao faroeste goiano. Ali, dois homens se enfrentam por questões de honra: um roubou a mulher do outro. Um convoca um velho pistoleiro de aluguel. O outro, dois jovens pistoleiros. E assim vão: homens frustrados, abandonados, tristes e raivosos.
A bela Chapada dos Veadeiros, onde foi feito o filme, ajuda. O belíssimo projecto em que Rassi reencontra o Victor Sjostrom de “A Carruagem Fantástica” (1921) e um final fortíssimo, contam pontos. Mas me parece possuir um problema grave de roteiro: protagonista e opositor são iguais, a mesma coisa. Daí uma evolução um tanto sonolenta. Mas o talento do jovem diretor está aí.
Com “Malês”, Antonio Pitanga salta para a direção com não pouco luz. Para encetar, ele traz à luz um incidente ignoto da história brasileira: a revolta de um grupo de escravizados muçulmanos na Bahia, 1835. Em seguida, consegue, com uma ou outra exceção, driblar todos os clichês do nosso escravagismo. Faz um trabalho notável de escansão entre os negros e insere duas mulheres brancas que, exclusivamente com suas expressões, sem necessitar de gestos sangrentos, sabem transcrever ideias de crueldade, dominação, crença na própria superiorididade servindo-se de pequenos gestos, não mais.
Alguns momentos em que esquece a discrição atrapalham, sem incerteza, assim uma vez que uma extemporânea cena erótica. Mas a direção de atores, a ambientação, a luz, quase tudo , enfim, fazem de “Malês” um filme-espetáculo arrancado ao zero, mas onde espetáculo não quer expor vazio, onde diversão não quer expor distração. Essa segmento do que somos será apreciada por mais do que um pequeno grupo de fãs?
Julio Bressane, por sua vez, abre seu “Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísica” com a apaixonada refilmagem do primeiro filme brasílico, de Affonso Segretto: um filme fantasma, nunca filmado, velado por defeito da máquina, simplesmente perdido. O vestuário é que Bressane mostra o que veríamos hoje caso o filme existisse.
No totalidade, “Relâmpagos de Críticas, Murmúrios de Metafísica” é um pouco decepcionante. Retoma cenas da história do cinema que o formou, na primeira segmento. A segunda, no entanto, parece mais uma autocelebração da própria trajetória, que, sabe-se, é muito mais que estimável.
Enfim, faz sentido a indagação “Que cinema é esse?”, assim uma vez que faz perguntar “que país é esse?” ou, mais amplamente, “quem diabo somos nós?”