São Paulo
“O que os deixou bêbados a mim fez corajosa”, declara Lady Macbeth no que poderia ser a síntese da minha experiência assistindo ao espetáculo “Um Porre de Shakespeare”, em edital desde o primórdio do mês no Teatro do Núcleo Experimental, em São Paulo.
No caso da ardilosa personagem, a coragem era para levar a cabo o projecto que arquitetou junto ao marido para massacrar o rei e tomar seu posto. No meu caso, foi só para continuar virando doses de cachaça enquanto tentava me concentrar na peça e fazer anotações à meia luz para grafar um texto sobre ela.
Explico: “Um Porre de Shakespeare” mostra um grupo de seis apreciadores do dramaturgo William Shakespeare (1564-1616) que se reúne periodicamente na fictícia Sociedade Literária do Velho Trovador Bêbado para encenar textos do responsável. Eles acreditam que a bebida funciona uma vez que um via para aproximá-los do espírito do britânico, de modo que a cada noite um deles é sorteado para virar alguns shots no primórdio do espetáculo.
Só que, de verdade, tá? A metalinguagem não está somente no indumentária de que são pessoas encenando outras pessoas encenando a tragédia “Macbeth”. O ator sorteado de indumentária tem que mourejar com os neurônios encharcados de álcool para se lembrar das intrincadas falas e dos longos solilóquios que caracterizam o texto do responsável.
Fascinado com a proposta, que surgiu em um espetáculo em Londres e ganhou versões de sucesso em outros países, fiquei referto de dúvidas. Uma vez que isso pode dar patente, meu Deus? O ator não se atrapalha todo? Não tem temor de remunerar mico na frente da plateia? Uma vez que deve ser trabalhar com umas doses de álcool turvando a mente?
Foi quando tive a teoria de presenciar ao espetáculo tomando as mesmas doses que o ator sorteado para depois grafar uma vez que tinha sido a experiência. Falei com a produção da peça, que, para minha surpresa, achou o sumo. Sugeri à Folha, que, contrariando minhas expectativas (e me deixando em desespero), topou.
Vale fazer uma salvaguarda cá: sou muito fraco para bebida. Sou desses que, quando qualquer médico pergunta sobre os meus hábitos, responde que bebe socialmente (mas no meu caso não é caô). É muito de vez em quando mesmo e, desde que saí da moradia dos 20 anos, em quantidades cada vez mais moderadas.
É por isso que cheguei apreensivo para presenciar à peça. Quando entrei no teatro, o principal objetivo era não vomitar em ninguém e, se provável, não provocar a ponto de tumultuar a peça. Spoiler: não causei.
Até aquele momento, eu não sabia nem que tipo de bebida eu iria tomar. Fiquei sentadinho em uma mesinha próxima de uma das pontas (além dos lugares normais, existe essa opção —ou você pode ainda permanecer nos tronos do rei e da rainha, o que exige boa disposição de interagir com o elenco durante o espetáculo), aguardando orientações da produção.
Começa a peça e, já nos minutos iniciais, ocorre o sorteio do ator bebum. O contemplado foi Rodrigo Caetano, que naquela noite fazia os papéis de feitiçeira, malfeitor, criada e Malcom (a cada apresentação, os atores também se revezam nos papéis). Uma bandeja com seis pequenos cálices de metal é trazida e, naquele momento, descubro que também farei segmento da peça.
Para fundamentar que o que havia nos recipientes era, de indumentária, bebida alcoólica, sou chamado para escolher um copo aleatório e virar meu primeiro shot ali, na frente de todos. Lá se foi minha esperança de ir tomando o líquido aos poucos, com pequenos e pausados goles. Foi tudo de uma vez, rasgando a gasganete. Ao menos, recebi aplausos.
Para as demais doses, fiquei com uma garrafa na mesa. Eu mesmo abastecia o cálice quando via o ator entornando o dele.
Singelo, no primórdio lutei para me concentrar no texto que os atores estavam interpretando, o que foi uma tarefa inútil. “Não consigo entender zero”, anotei no meu bloquinho. Em outro momento, os garranchos tinham coisas desconexas uma vez que “uón uón luz adaga”, que eu não faço teoria do que estavam querendo relatar.
Foi quando decidi somente relaxar e aproveitar o momento (por fim, acho improvável que eu seja novamente pago para tomar enquanto trabalho). Rapidamente, percebi que a tragédia que estava sendo encenada em tom de humor era só um pretexto e que o espetáculo é um grande (e jocoso) treino de estar presente, com tudo o que isso representa.
Ao todo, tomei 9 shots de cachaça naquela noite. Confesso que, lá pelas tantas, as minhas doses foram ficando cada vez menores, de modo inversamente proporcional às caretas que eu fazia e às lágrimas que teimavam em encher meus olhos cada vez que tomava uma delas.
Já Rodrigo Caetano parecia muito até metade da peça. O ator continuava pedindo mais doses, patente de que o texto sairia com mais facilidade. Até que as falas começaram a sumir da mente e ele começou a dar um ou outro tropeção em segmento do mobiliário de cena.
Cada pequena gafe arrancava risadas da plateia (as minhas talvez estivessem um pouco fora de hora, desculpem). O resto do elenco estava sempre pronto para ajudar o colega bêbado a lembrar o que tinha que manifestar, mas também para potencializar as situações cômicas que aquela situação gerava.
“O que está fora de ordem?”, perguntou Rodrigo em uma de suas falas. “Você está”, respondeu outro ator, com uma sagacidade que quase não parecia ter sido improvisada na hora.
No final, nem precisava de tanto álcool para respeitar o ótimo espetáculo.