O ringir do palco que acolheu montagens memoráveis, o cheiro da madeira, o burburinho dos bastidores, o subir e descer da enorme cortinado vermelha. Tony Ramos sentia saudade do ritual de participar de uma peça de teatro. Fazia 22 anos que o ator não vivia a experiência de estrelar uma montagem.
Guarda ótimas lembranças da última, “Novas Diretrizes em Tempos de Sossego”, de 2002, na qual viveu um ex-torturador da polícia que lhe valeu um raríssimo panegíricio de Bárbara Heliodora, uma das mais respeitadas e temidas críticas teatrais brasileiras, famosa pela economia de adjetivos.
“É um reencontro muito peculiar para mim”, conta o ator de 75 anos que, com a estreia de “O que Só Sabemos Juntos”, no Teatro Tuca, dia 26 de abril, vai também iniciar a comemoração de 60 anos de curso, boa secção construída na televisão —sua primeira romance foi “A Outra”, de 1965, na extinta TV Tupi— hoje são mais de 50 títulos, além de séries e teleteatros.
Na Orbe, estreou em “Espelho Mágico”, de 1977, iniciando um contrato de exclusividade ainda em vigor, somando já 47 anos e com término previsto para setembro, ao contrário de especulações que apontavam o final para nascente mês de março.
Ramos é um dos poucos artistas a ainda manter vínculo fixo com a emissora, que vem gradativamente acertando contratos por trabalhos específicos. “Especulações sobre minha não renovação acontecem há dois anos. Nunca se sabe, mas por enquanto continuo na Orbe”, afirma ele, que teve porquê último papel Antonio La Selva, um dos vilões de “Terreno e Paixão”, folhetim das nove que não alcançou o sucesso esperado.
Aliás, sua volta ao teatro vai ocorrer com um novo visual, agora sem a vistosa barba grisalha que marcou o personagem da romance.
O ator vai dividir a cena com Denise Rochedo, atriz com trajetória de 40 anos que foi essencialmente construída em outro espaço, no palco. “É um prazer trazer o Tony de volta a esse emocionante playground”, brinca ela.
A referência ao parquinho infantil não é unicamente uma ironia. “O Que Nós Sabemos Juntos” não traz um texto tradicional, com início e termo. Tampouco os atores vão viver personagens específicos. O título, aliás, já antecipa porquê a participação da plateia será forçoso. Para um melhor entendimento de porquê nasceu o projeto, é preciso voltar no tempo.
Em 2018, Ramos iniciou a gravação da comédia dramática “45 do Segundo Tempo”, na qual traz uma de suas atuações mais delicadas no cinema. Ele vive o proprietário de uma cantina tradicional que está em vias de fechar. Assim, antes do termo melancólico, decide reencontrar dois amigos da juventude depois de 40 anos. “Só precisei ler as primeiras 12 páginas do roteiro para me emocionar e topar fazer o filme”, relembra.
A direção foi de Luiz Villaça, companheiro na vida e na arte de Denise Rochedo, com quem já rascunhava o primeiro solilóquio dela, “Eu de Você”. É uma muito costurada dramaturgia que reúne histórias e sentimentos da própria Rochedo, de citações de escritores renomados e, principalmente, de vivências reais de pessoas anônimas, coletadas ao longo de seis meses.
Tony Ramos assistiu à peça duas vezes e ficou seduzido com a capacidade de notícia com a plateia. A forma pouco tradicional de atuação o fascinou. “Sei que posso fazer qualquer tipo de espetáculo e me interessava alargar os horizontes”, conta o ator, cuja versatilidade no palco ficou notória entre os anos 1960 e 1990, quando tanto atuou na peça “Quando as Máquinas Param”, ao lado de Walderez de Barros, porquê interpretou a travesti Geni em “Olê Olá Meu Refrão”.
Show em homenagem aos 25 anos de curso do compositor Chico Buarque, nele cantou, dançou e usou salto 15. Dividiu ainda o palco com Regina Braga, em 1997, em “Cenas de um Tálamo”, em que Ingmar Bergman, em um de seus mais densos textos, descortina o paixão e a dor em suas diversas paisagens.
Com o meneamento de Ramos em participar de um projeto semelhante e mútuo, Denise e Villaça se uniram ao tradicional parceiro, o produtor José Maria, para rascunhar “O Que Só Sabemos Juntos”.
Novamente, há costura de histórias pessoais, com citações de grandes autores e a vivência de pessoas anônimas. A peça promove o encontro de dois atores, um varão e uma mulher, com uma povo de pessoas na plateia. A conversa começa com a presente das memórias daqueles artistas e suas referências teatrais, porquê Tio Vânia, do russo Anton Tchékhov, e Galileu Galilei, do teutónico Bertolt Brecht.
Com a consultoria e participação do dramaturgo Vinicius Calderoni, as conversas vão aos poucos condensando dramas humanos. Assim, ao longo da peça, juntam-se pinceladas do pensamento da autora, ativista e feminista bell hooks, além dos ensaios e crônicas da escritora polonesa Olga Tokarczuk, textos da jornalista e documentarista brasileira Dorrit Harazim, pitadas da prosa da francesa Annie Ernaux e da trova de Fernando Pessoa, Wislawa Zymborska, Arnaldo Antunes, João Cabral de Melo Neto, entre outros.
Aos poucos, o enredado vai envolvendo a plateia na construção de um alfabeto de memórias, de gestos, de experiências, mais que de opiniões.
“Eu palato de racontar as pessoas quando tem muita gente porque eu palato sempre de imaginar que, sei lá, quando se trata de gente, século não é século, são século unidades, século uns, século cada um, século pessoas com vidas, histórias e experiências muito diferentes umas das outras”, diz a atriz em uma das cenas iniciais.
“Recolhemos fragmentos das histórias das pessoas, momentos que elas não dividem com ninguém por julgarem desimportantes, um tanto porquê os lugares da nossa mansão em que a gente prefere estar. A boca do fogão que a gente prefere incendiar. O palato de sentar naquela cadeira justamente daquele lado da mesa”, continua.
“A falta de escuta e da percepção do outro viraram o grande problema das relações. Daí a força do teatro para, permanentemente, iluminar e socorrer a vida.”
Em cena, Ramos até ensaia uns passos de dança, ao som de uma margem com cinco mulheres que se apresenta ao vivo, sob a direção de Fernanda Maia.
“É uma espécie de realimentação”, afirma Ramos. “Sabor dessa gaudério de que só sabemos juntos, respeitando o tempo interno do outro, seu silêncio. E de que o melhor é preferir a incerteza e o questionamento em vez da certeza fácil e esvaziada.”
Com mais de 140 personagens no currículo, Ramos continua fã ardoroso de telenovelas, ainda que a audiência do gênero venha caindo. “Porquê se pode tachar de fracasso uma romance que atrai a atenção de, pelo menos, 5 milhões de pessoas?”, questiona ele, que credita à junção de três fatores o sigilo de um sucesso, paixão, paixão e suspense.
“Esse mesmo padrão está na minissérie, no streaming, no seriado americano ou inglês. Ou vai me proferir que ‘Breaking Bad’ não é uma espécie de romance?”