A RBTLC (Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso), projeto que vem há anos tentando se solidificar, não tem uma aba para a Trilha TransEspinhaço, que nasce em Ouro Branco, no sul de Minas Gerais, e segue até a lema com o estado da Bahia, passando pelo parque pátrio das Sempre Vivas, em Diamantina.
Mas foi justamente para incluir esse bioma múltiplo no planta da RBTLC que o militar jubilado e ex-chefe do Parque Vernáculo de Itatiaia Luiz Aragão decidiu pegar a mochila e percorrer 740 quilômetros em 50 dias —projeto que acalentava desde 2017. Nas boas intenções dos mapas, a TransEspinhaço percorreria um totalidade de 1.200 quilômetros. Uma TLC (Trilha de Longa Intervalo) de reverência que, mais uma vez em tese, poderia brotar ombro a ombro com as grandes jornadas do Caminho dos Apalaches, que percorre 3.538 quilômetros seguindo as montanhas Apalaches na costa leste dos Estados Unidos, ou a Pacific Crest Traill (PCT) também nos EUA, maior ainda, com 4.260 quilômetros de extensão pela costa do Pacífico. Maior até que o badalado Caminho de Santiago, que tem em torno de 900 quilômetros.
Mas, se a teoria é perfeita, a prática, pela jornada de Aragão, fica muito aquém do que se vê nas terras do setentrião. Ao contrário dos milhares de pessoas que percorrem todo ano esses caminhos norte-americanos e europeus, a jornada do hiker pelas “espinhas” mineiras foi absolutamente solitária. Ao longo dos 50 dias, ele conta que não encontrou mochileiro qualquer, nem percorrendo a intervalo totalidade, nem em trechos. A TransEspinhaço é desconhecida dos brasileiros. E o tracklog (registro das coordenadas geográficas que devem ser percorridas pelo usuário, definidas por GPS) existente é tudo menos preciso.
“Meu objetivo era testar o traçado e a logística para passar ao comitê da TransEspinhaço o que encontrasse”, conta Aragão, um enamorado por mato que teme que o Brasil esteja perdendo a oportunidade de estabelecer as trilhas de longo curso para a ocupação imobiliária e a produção agropecuária de grande extensão.
“A gente tem que escolher três trilhas cá no Brasil e focá-las, daqui a pouco não vamos mais conseguir demarcá-las”, acrescenta ele, que se diz apreensivo com a possibilidade de o país perder essa oportunidade. As três rotas prioritárias e que estão mais ameaçadas, em sua visão, são a Rota das Araucárias, a Transmantiqueira e a TransEspinhaço.
“Em alguns trechos do traçado solene, não só encontrei cercas fechando a passagem, uma vez que também muros marcando a construção de condomínios, exigindo desvios não previstos”, lembra ele.
Aragão conta que seu planejamento se dividiu em três partes. Primeiro, identificar no planta e no tracklog original os possíveis pontos de provimento, onde o caminhante pode encontrar uma mercearia, uma farmácia, e renovar seu estoque de provisões e eventuais remédios. A segunda era confirmar pontos de escora, que podem ser uma quinta, a sede de um parque ou uma morada que ofereça qualquer tipo de hospedagem e um banho quente, que sempre tem seu valor. E, finalmente, os marcos e referências que orientariam a intervalo a ser percorrida a cada dia, considerando a oferta de chuva, extensão para eventual camping selvagem e o melhor traçado a percorrer.
“Quando peguei o tracklog, ele veio todo partido, e no meu planejamento peguei os 750 quilômetros oficiais e dividi por 15, que seria a intervalo média que pretendia percorrer cada dia”, relata. Marcando os pontos no Google Maps e observando os detalhes no Google Earth, identificava se ao final desses 15 quilômetros encontraria uma manadeira de chuva, um ponto de escora ou mesmo alguma vila para provimento. E aí começaram as dificuldades.
“O maior problema foi a comida”, ressalta Aragão. “Eu conheci sete parques nacionais norte-americanos e em todos encontrei lojinhas do tamanho de quitinetes nos quais você encontra tudo o que precisa para seguir andando, comida, equipamentos, tudo”, explica. Nas mercearias e vendinhas ao longo da TransEspinhaço, o supremo que conseguia comprar, além do obrigatório moca, bananas e algumas bolachas, era miojo em suas mais variadas versões —e com sorte. “Carboidrato que desse para carregar e dar força sem solicitar perda de tempo cozinhando era só esse”, lembra. As proteínas necessárias para manter os músculos em ordem vinham de ovos (que precisavam ser cozidos, por óbvio, para serem levados na mochila) ou latas de sardinha, talvez uma ou outra de atum. “Nem um salaminho, nem um queijinho que não fosse aquele fresco, que ia amargar na mochila sem refrigeração, ou o ralado de saquinho, e estamos falando de Minas Gerais!”, exclama, recreativo depois de degustar uma bela repasto completa ao lado da esposa Emily.
Quarenta dias depois de muito miojo com sardinha, rendeu-se à verdade e encomendou um lote de provisões liofilizados, que pesam pouco e podem ser comidos diretamente da embalagem unicamente com o acréscimo de um pouco de chuva quente. O problema, aí, era identificar qualquer ponto para onde a encomenda desses provisões pudesse ser enviada pelo correio, para evitar ter que levar peso demais por todo o caminho. “Em alguns locais que pensava serem de escora os donos simplesmente não queriam receber a encomenda”, diz. Os nomes e endereços dos refratários, certamente, serão indicados no relatório que vai apresentar sobre a jornada, por fim a teoria é ajudar mais gente a seguir a trilha com a melhor infraestrutura verosímil —ou evitar que entrem em roubadas.
Se o traçado não batia com a vida real e o provimento era pra lá de precário, Aragão lembra que falta ao longo da TransEspinhaço mais um vetor necessário para o bom funcionamento da jornada: o voluntariado. Aquelas pessoas locais que se dedicam a prometer que a trilha esteja devidamente sinalizada, que cuidam do manejo obrigatório, e mantêm o trajeto minimamente seguro. “Tem que ter uma associação que mobilize talentos que podem estar incubados à espera de serem acionados, em um trabalho organizado e manente”, aponta ele, publicado por ter mobilizado dezenas de voluntários em suas empreitadas anteriores, uma vez que a sinalização dos caminhos da Transmantiqueira e o manejo do Itatiaia. Essencialmente, um sonhador.
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