“Os Trapalhões – Modo de Ser, de Pensar e se Expressar” não é uma biografia convencional da trupe comandada por Renato Aragão. É um catatau com mais de 700 páginas, que não precisam ser lidas na ordem. O livro de Rafael Spaca está, assim, mais para um catálogo abrangente de tudo de interessante que os membros do grupo —e pessoas ligadas a eles de alguma forma—, declararam à prelo desde o início da dezena de 1960.
Spaca é hoje o maior perito na vida e na obra dos Trapalhões, e já publicou diversos livros sobre eles. Alguns abordam aspectos específicos, porquê os filmes ou as HQs protagonizadas pelos humoristas.
O responsável também escreveu e dirigiu a minissérie documental “Trapalhadas Sem Término”, que segue inédita. Nenhuma plataforma de streaming se interessou, supostamente porque Renato Aragão é mostrado porquê uma espécie de vilão. Os advogados do ator também estariam a postos para tentar embargar a exibição.
Mas enfim, qual é verdade sobre Aragão? O comediante que emerge das páginas de “Os Trapalhões – Modo de Ser” é meigo, preocupado com seus colegas e interessado em manter a qualidade de seu trabalho.
Só que logo surgem vozes dissonantes, e também uma verdade incontornável: ele sempre ganhou muito mais que Dedé, Mussum e Zacarias. Brigas por quantia causaram uma separação do grupo, na dezena de 1980, e os ressentimentos ainda perduraram por muito tempo.
Ler um capítulo do livro do prelúdios ao término é uma experiência curiosa. Uma mesma história se repete várias vezes, mas com pequenas ou grandes variações. Por exemplo: quem identificou em Dedé Santana o parceiro ideal para Renato Aragão? Uma vez que se deu o primeiro encontro da dupla? As diferentes versões são saborosas, e reveladoras do funcionamento da memória seletiva.
Também fica clara a singularidade de Renato Aragão entre os gigantes do humor de sua geração. Nomes porquê Jô Soares, Chico Anysio ou Agildo Ribeiro não precisavam de ninguém para apoiá-los em cena. Todos estrelaram shows de comédia stand-up e criaram galerias de tipos caricatos.
Já Aragão tinha basicamente só um personagem, Didi, uma versão exaltada de si mesmo —o nordestino esperto, que sempre se dava muito. E Didi raramente aparecia sozinho. Ao longo de sua curso, Aragão sempre contou com a ajuda de um “escada”, o ator que prepara o terreno para que a piada aconteça. Acabou criando uma companhia de saltimbancos modernos, que teve várias formações antes do quarteto que se tornou clássico.
O trabalho de formiguinha executado por Rafael Spaca é magnífico. O responsável não buscou somente entrevistas dadas a grandes jornais e revistas de subida circulação, porquê as extintas “Amiga” ou “Sétimo Firmamento”. Também estão presentes depoimentos a veículos regionais, podcasts recentes e obscuros programas no YouTube.
Reunidas num único volume, essas milhares de declarações constituem um material de consulta inestimável para quem quiser saber mais sobre o maior fenômeno do humor brasiliano da segunda metade do século 20.
Dezenas de famosos que trabalharam com Os Trapalhões dão sua visão sobre eles, e há capítulos inteiros dedicados a cada um dos integrantes. É interessante saber, por exemplo, que Mauro Gonçalves, o Zacarias, era o único dos quatro a ter formação profissional de ator. Também era o único personagem que não era um revérbero exagerado da personalidade de seu tradutor —para compô-lo, Gonçalves usava uma peruca.
Hoje Os Trapalhões vêm sendo descobertos por novas gerações. Mussum, mormente, se tornou uma espécie de ídolo, retratado no cinema e imortalizado em memes. Também é ele —ou melhor, o tratamento oferecido a ele pelo resto do grupo— que atrai acusações de que o grupo era “politicamente incorreto” e até racista. O livro de Spaca deixa simples, no entanto, que o próprio ator inventava piadas que hoje provocariam seu cancelamento. Os tempos eram outros.
“Os Trapalhões – Modo de Ser, de Pensar e Se Expressar” termina com uma longa entrevista exclusiva de Boni ao responsável. O ex-todo poderoso da TV Orbe dá respostas lacônicas e parece se comportar porquê se ainda trabalhasse na emissora, sem fazer grandes revelações.
Mas, num ponto, é taxativo. “[Renato] sempre recebeu mais e [isso] era justo. Ele era o líder do grupo e sua figura principal.”
