Tunga Tem Mostra No Malba Em Buenos Aires 14/02/2025

Tunga tem mostra no Malba em Buenos Aires – 14/02/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

O corpo é ao mesmo tempo raiz e flores, um tronco estendido entre o zero abissal e as pétalas que lutam pela luz solar. Tunga é o arquiteto dessa tragédia enxurrada de vida, o retrato crepuscular dos breves instantes em que nossos corações batem, entre o promanação e a morte.

É a vida, no impulso do sexo, que importa em todo caso. Um quarto de século desde a sua última mostra na Argentina, a derradeira megainstalação do artista brasiliano, “Eu, Você e a Lua”, agora toma um banho de sol no átrio do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, iluminada pela luz do dia filtrada pelas claraboias no teto da galeria e entrevista pela janela ocasião na lateral do prédio, fresta que não vasqueiro atrai os passantes na lajedo para um espetáculo de vidro, cerâmica, metal, gesso e resina.

Difícil não prestar atenção nessa arquitetura de equilíbrios e balanços delicados. No meio de tudo, está o tronco de uma árvore fossilizada, madeira que se transformou quase em vidro esbranquiçado, um gavinha entre vida e morte, projecto terreno e celestial, transformado por forças que não controlamos, a madeira antiga feita exótica estátua.

Nas laterais, uma vez que que fecundando óvulos trincados, dois dedos gigantescos fazem pressão, gozam em espasmos e se desfazem em tempestade sobre garrafas e bacias, entre espelhos e frascos sobre um traçado de linhas no solo da galeria, uma frágil arquitetura do libido que alegoriza nossa também frágil existência, o corpo que endeusamos uma vez que a músculos mais fraca do mercado.

Tunga, morto há nove anos, foi antes de artista uma espécie de anatomista surrealista e punk, obcecado por tudo o que atravessa o corpo humano, pela virilha, pelos peitos, pênis, vagina, ânus, um artista de olho no solo, no mais capital da natureza humana uma vez que animais que se excitam, deitam e rolam, bichos, por mais elegantes e sofisticados, que não deixam de ser rasteiros, excitáveis e fáceis.

Se no traçado solto e surrealista de seus desenhos, composições muitas vezes espelhadas, que ele fazia com as duas mãos, isso fica só nas trêmulas entrelinhas, Tunga já mostrou o sexo e o fetiche, em toda a sua exuberância grosteca, em “Cooking”, um filme explícito, em que um parelha se entrega a prazeres com cristais, fezes e urina, com pedras penetrando orifícios e outras coisas mais. Também já mergulhou bailarinos em líquido vermelho sangue e dirigiu mulheres nuas a maquiar peças de greda em performances que refletem a estranha flexibilidade da músculos.

Na mostra agora em Buenos Aires, os corpos de músculos e osso estão ausentes, ao menos nesse proporção de presença. Isso talvez porque na instalação, construída já no término da vida, Tunga orquestrava nas formas exasperadas a sensação de velocidade, a consciência de um corpo que agora está cá, mas sempre em vias de desvanecer, o corpo em colapso porque é feito de músculos, chuva e sal, mas eterno porque se torna cristal, o grande fóssil que rege esse jogo de pesos e contrapesos, ele mesmo vazio, uma vez que um túnel entre duas dimensões paralelas.

O que sobra, nessa visão de Tunga, é a encenação calculada de uma arqueologia, os rastros que deixamos para trás, nossa transmutação em coisa outra no promanação, no sexo, na morte, uma vez que um processo de pura alquimia —pele, sangue, pelos, ossos e músculos que se tornam minerais, raízes, fósseis, cristais. Seria o que ele entende por memória visual e molecular prévia à existência, um flagra da natureza antes de ela ser conspurcada por uma humanidade menos resistente ao tempo, distante da sólida venustidade das pedras.

Num documentário, também exibido no museu, Tunga fala do que seria uma pinga d’chuva cristalizada numa pedra em forma de garrafa uma vez que uma testemunha de um tempo antes mesmo dos dinossauros, o elemento-testemunha da vida na Terreno antes de nós, antes de tudo, as árvores uma vez que ponte entre terreno e firmamento. Ele sabe que isso é um treino de pura extrapolação, a teoria que o artista imagina as coisas, constrói imagens que ele faz surgir, sonhos e pesadelos que saltam do delírio para a concretude do material.

É um vocabulário que, no caso dele, por mais selvagem e visceral que possa se manifestar na superfície, respeita uma jerarquia simbólica rígida. Tunga repetiu muitas formas e objetos —tranças, cálices, garrafas, sinos e tacapes— nos mesmos materiais —cobre, epiderme, cristal, bronze, feltro ou ferro fundido. Era um surrealista apegado à figuração, a formas reconhecíveis, mas que se deixam cruzar pelo imprevisível, a músculos nervosa uma vez que as mãos que desobedecem ao comando do cérebro. No fundo, mais paixão e menos ordem.

Delicados, os desenhos que circundam a instalação são suas âncoras visuais, formas na folha de papel que se desdobram nos contornos físicos das esculturas. Nos próprios desenhos, há um espelhamento, um jogo de duplos. Um deles sugere figuras gêmeas unidas pelos seios, de um lado, uma perna, do outro, uma asa. Outro mostra dois olhos unidos por um inextricável de linhas que no meio formam tanto uma vulva quanto um saco escrotal, uma sexualidade primordial, masculina e feminina, trans, o todo da espécie humana de onde fluem várias linhas que se cruzam.

Esses pares, seres que dão à luz seus próprios pares idênticos, são um motivo que atravessa toda a obra do artista desde as meninas gêmeas que fez desfilar pela galeria unidas pelos longos cabelos, seus ímãs unidos por forças maiores do que humanas, ou as gigantescas tranças de cobre em que os cabelos, tornados metal, parecem serpentear num sentido de ordem, mas uns sobre os outros, sempre em multiplicação.

Tunga foi um agente sumo da vontade, um artista movido por uma força vital tão avassaladora que, em consciência da própria finitude, lidava com a futilidade da vida, um acidente, por fim, tão muito quanto com o espelho da morte, o nosso tramontana final. Sem pavor, irrefreável, construiu no seu laboratório de estranhezas uma grande celebração do mais insondável mistério que é estarmos cá e agora.

O inevitável flerte entre a vida e a morte, do sangue à suco escorrida em troncos que já são fósseis, está no meio de tudo o que fez, ele uma vez que testemunha da mais dolorosa venustidade, o barroco explícito e duro uma vez que os ossos das caveiras. Tunga dizia, não espanta, que “as cavernas mais profundas da mente brilham com esplendor”.

Folha

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