Quando contou para uma parente, durante um encontro de comunidades indígenas em Paraty, que voltaria à cidade para a Flip, a ativista Txai Suruí, 27, ouviu: “Você também vai vender artesanato?”.
A pergunta parecia óbvia para sua interlocutora. Durante a sarau literária, as calçadas das ruas principais do meio histórico de Paraty ficam tomadas de cestos coloridos, brincos e colares de miçangas, cocares e animais da floresta entalhados em madeira comercializados por indígenas.
“Geralmente, o nosso povo não é da porta para dentro, da janela para dentro, mas é vendendo artesanato da porta para fora”, constata Txai, que é colunista da Folha e lança seu primeiro livro, “Música do Paixão” (Gavinha), na Flip.
“É uma responsabilidade fazer essa cobrança: eu não posso ser a única onde os meus não têm voz para falar. Quero furar portas para ocuparmos esse lugar que é de construção do imaginário de região porquê autores reconhecidos, pensadores e filósofos. Queremos esse lugar da intelectualidade também.”
Na privação de seus pares nas mesas da sarau literária, Txai se multiplicou. Esteve em duas mesas da programação principal e em vários debates e leituras da programação paralela da Flip. Falou de política e de eleições municipais, de marco temporal e de direitos indígenas, de seca e de desmatamento, de ativismo e de resistência.
“Falei um montão”, brincou ela na lisura da mesa extraordinária, Parar o incêndio, que dividiu com o crítico ambiental Pablo L.C.Casella, responsável de “Contra o incêndio” (Todavia). “É o incêndio que queremos combater ou são as pessoas que estão colocando incêndio ilícito na mata?”, disse ela, que é uma das fundadoras do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e que ganhou notoriedade internacional ao discursar na lisura da Conferência da ONU pelo Clima de 2021, em Glasgow (Escócia).
Em sua romagem pelos debates, de cocar e chinelos, que coloca de lado para deixar os pés no soalho durante as conversas, Txai apresentou seu exposição contundente sobre a luta dos povos originários pela preservação da natureza e convidou o público a pactuar para a urgência da resguardo da floresta.
“A luta dos povos indígenas é a luta pela floresta, pela vida. Vocês não querem viver?”, provocou ela na manhã deste sábado na Lar das Histórias, onde foi entrevistada pelo cineasta e responsável João Moreira Salles, que apresentou trecho do documentário inédito “Minha Terreno Estrangeira”, com lançamento previsto para 2025.
O filme dialoga com “Entreatos”, documentário de Salles que acompanhou a campanha de Lula para a presidência em 2002, e investiga o tipo de personagem político produzido pelo Brasil 20 anos depois, para o muito ou para o mal.
“Para o muito, havia alguém porquê a Txai, um caso típico de uma geração que vem na esteira de políticas públicas muito sucedidas e da tomada de consciência política de quem entra na faculdade pela primeira vez”, conta o cineasta, que assina em correalização com o coletivo Lacapoy, de jovens cineastas indígenas do mesmo povo Paiter-Suruí de Txai, de Rondônia. O filme acompanha por 40 dias, em 2022, a campanha eleitoral para deputado federalista do pai de Txai, o Cacique Almir Suruí, ao mesmo tempo em que a câmera de Salles registra a militância internacional da jovem liderança indígena em Novidade York.
“Para quem é do campo democrático, a vitória de Bolsonaro naquelas eleições seria trágica e provavelmente sacrificaria a democracia brasileira. Só que a gente sabe que isso tem volta porque, depois de 21 anos de ditadura, foi provável restaurar a democracia”, explica Salles. “Mas ao seguir a Txai e o mundo dela, percebi que essa era uma questão existencial, de sobrevivência. E estar ao lado de pessoas para quem aquela eleição não era exclusivamente uma questão de prorrogar a democracia, mas de condensar a morte, foi uma experiência bastante radical pra mim.
“Durante a tarde de sábado, Txai esteve ao lado do jornalista Tiago Rogero, responsável do podcast “Projeto Querino”, que virou livro pela editora Fósforo, em debate na Lar Folha mediado pela jornalista Paola Ferreira Rosa e intitulado “A novidade história do Brasil”.
“A mesa dá teoria da luta compartilhada que negros e indígenas travaram juntos. Não existiria Brasil sem as pessoas negras nem sem as pessoas indígenas”, disse Rogero.
Txai contou a história de seu avô, que teve o primeiro contato com pessoas não-indígenas já adulto, nos anos 1960, e que enfrentou madeireiros em Rondônia na base do roda e flecha.
“Hoje é através da caneta que eles vêm nos matar, com projetos de morte porquê o da PEC 48, que quer inserir a tese do marco temporal na nossa constituição. Isso num país que nunca fez revolução agrária nem reparação histórica com nosso povo.
“Foi seu pai, Almir Suruí, quem lhe ensinou que a luta de seu povo não deveria ser mais com roda e flecha, mas com celulares e internet.
Quando Txai ainda era menino, Almir viajou à Califórnia para um encontro indígena e resolveu maltratar na porta do Google. “Ele dizia que não sabia zero de tecnologia, e que o Google não sabia zero de floresta. E sugeriu uma parceria de troca de conhecimentos”, conta a filha orgulhosa. “Ele sempre foi um visionário. E o apelo deu claro!”
A localidade de Txai recebeu uma equipe da big tech para um treinamento. “Ensinaram a gente a mexer em e-mail, no Google Earth e em todas essas coisas do Google. E a gente construiu um planta etnográfico da terreno indígena Sete de Setembro, enxergou de onde vinham as ameaças ao território e começamos nosso projeto de reflorestamento.
“Foi sua mãe, a ativista Ivaneide Bandeira Cardozo, conhecida porquê Neidinha Suruí, que insistiu para que ela estudasse inglês e que batalhou para mandar a Txai para uma temporada na Irlanda, onde estudou a língua.
“Não são muitos os indígenas que falam inglês. E isso abriu muitas portas para mim e me permitiu obter outros lugares do mundo e levar para o mundo a nossa mensagem”, conta.
Nessas andanças, Txai fala da veras do estado de Rondônia. “Se fala muito que o agronegócio carrega o Brasil. É uma falácia porque o agronegócio se beneficia de subsídios do governo e não devolve isso para sociedade”, afirma, citando o exemplo sítio.
“A cidade de Porto Velho tem o maior rebanho bovino do Brasil e foi classificada porquê a capital do país com os piores índices de desenvolvimento humano. A gente passou dois meses queimando e respirando fumaça, e ninguém fez zero. Quem está queimando? Por que está queimando? É para fazer pasto. Portanto, proteger os territórios que têm floresta é também a principal solução. E os principais locais que tem floresta em pé são as terras indígenas.”