Um cinema que rompe silêncios 15/05/2025 djamila ribeiro

Um cinema que rompe silêncios – 15/05/2025 – Djamila Ribeiro

Celebridades Cultura

O que acontece quando histórias marginalizadas rompem o silêncio e ocupam o meio da narrativa? O filme “Manas”, de Marianna Brennand, faz o invitação à expansão dos horizontes e nos leva de paquete para uma travessia de rio junto a Marcielle —personagem vivida por Jamilli Correa— pelo preocupante, múltiplo e multíplice cenário do doesto infantil no Brasil, mormente na ilhéu de Marajó, no Pará, onde se passa o longa.

Nos últimos anos, muito tem sido dito na prensa e na política sobre os abusos cometidos naquela ilhéu. “Manas” devolve à região suas cores roxo do açaí, verdejante das águas e grafite das lamas —e, sobretudo, suas vozes, para propor o bom debate de que a violência sexual não é exceção, mas tautologia: repete-se na rede na morada, nos caminhões sobre a jangada, no banheiro de uma sarau. Uma rotina de crimes mascarada por tabus, até que o cinema a desvela com a precisão de quem conhece o peso do silêncio —e a potência da cumplicidade entre mulheres.

Se já é motivo de celebração vermos uma mulher levar às telas um filme com tamanha qualidade técnica e potência estética, “Manas” vai além: sua espinha dorsal é sustentada por mulheres em diversas frentes —na direção, na produção, no elenco. Isso nos convida a refletir sobre os efeitos transformadores que surgem quando são visíveis narrativas construídas por pessoas de grupos historicamente discriminados, uma vez que somos nós, mulheres, sob a estrutura do patriarcado.

O que Brennand e sua equipe constroem com maestria é um mosaico de silêncios eloquentes. A câmera não precisa mostrar o ato violento —ela nos ensina a ler seus rastros nos olhares desviados das mulheres, nos gestos interrompidos, nas pausas mais barulhentas que gritos. A violência está presente, mas não ocupa a cena com brutalidade. Ela se insinua —uma vez que costuma se insinuar na veras— entre silêncios, crueza e ausências.

Já quando a violência se escancara (e ela o faz, em cenas necessárias), vem carregada de um peso que escapa ao sensacionalismo, justamente porque o filme prepara o público para compreendê-la uma vez que segmento de um sistema, não uma vez que “caso só”.

Observei durante o filme Cinthia (vivida por Samira Eloá), uma moçoila negra, personagem coadjuvante, amiga de Marcielle. É notável que em pesquisa na internet para levante texto tive dificuldades para saber seu nome, muito uma vez que não encontrei foto sua. Não há referências ou entrevistas acerca de seu papel —e isso também nos diz sobre lugar de fala.

Mas preciso expressar que sua personagem me marcou por identificar nela o peso do patriarcado racista. Pode nos levar a refletir sobre a interseccionalidade que mulheres negras uma vez que Zélia Amante de Deus (educadora, mito viva brasileira e orgulho do Pará) há décadas denunciam: ela é sexualizada antes mesmo da puberdade, é acolhedora por natureza e poderoso por obrigação.

Porquê afirma a professora Zélia Amante em uma de suas obras: “Quem vem de Marajó não escapa. Se for preto, saberá desde cedo. Os espaços são separados. A casa-grande é a morada dos brancos. O rancho, a morada dos negros. Não há margem para dúvidas”.

Um olhar sisudo às personagens e podemos refletir o quanto uma denúncia pode custar; o quanto a exploração da desigualdade econômica vivida por mulheres sustenta a lógica do doesto infantil, da gravidez indesejada e do monstruosidade inseguro; mas também o quanto a perseverança solidária de muitas de nós pode furar caminho para outras.

A essas personagens se somam outras inúmeras mulheres (e alguns homens) que estão cá, na “vida real”, fazendo o que podem e muito além dos recursos que têm à disposição.

Na estreia em São Paulo, conheci algumas das pessoas reais defensoras de direitos humanos na região que inspiraram o longa —uma vez que a mana Maria Henriqueta, transformada na personagem Aretha (Dira Paes, magnética), e o mandatário Rodrigo Amorim.

O elenco, portanto, é um outro acerto do filme, que marca a estreia no cinema de Jamilli Correa, uma jovem paraense.

Escalar uma moçoila tão novidade (com 13 anos à quadra das filmagens) para um papel tão denso é uma decisão ousada —e que se mostrou certeira. Jamilli entrega uma atuação comovente, feita de fúria contida e paixão pelas mulheres da família. Agora sejamos sinceras: se esse fosse um filme dirigido por homens, a escolha seria alardeada uma vez que ousadia genial. Quando a direção é feminina, naturaliza-se o brilhantismo. Concordam?

Pois é o caso de parabenizar Marianna Brennand e toda a equipe do “Manas”, que chega às salas de cinema nesta semana e nos apresenta o cinema uma vez que instrumento de reparação, reflexão e transformação social.


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Folha

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