Não é generalidade no Brasil que roteiristas de cinema se tornem grifes, muitas vezes tão conhecidas quanto os diretores dos filmes de que participam. Mas o carioca Raphael Montes se converteu em um desses casos, catapultado pela popularidade de seus trabalhos na literatura policial e no streaming, porquê no livro e na série “Bom Dia, Verônica”, sucesso nas duas mídias.
O roteirista superstar agora traça um retrato de uma certa classe média brasileira no longa “Uma Família Feliz”, dirigido por José Eduardo Belmonte, pretérito em um condomínio dos sonhos, em uma cidade indeterminada do Brasil. A teoria, de antemão, é usar de ironia para criticar um estilo de vida espezinhado em aparências, mas com estruturas apodrecidas —um tanto na risco de outros longas sobre famílias tidas porquê perfeitas, do qual melhor representante talvez ainda seja “Felicidade”, de 1998, de Todd Solondz.
Sim, o título do filme é irônico, e o método de Montes em grande secção consiste em não ter lá grande preocupação com essa e outras ideias que, a alguns, talvez soem geniais, mas que a outros parecem terrivelmente óbvias. A mãe, vivida por Grazi Massafera, por exemplo, se labareda Eva, e não é muito difícil extrair daí que ela representa a mulher em sua universalidade; o pai, vivido por Reynaldo Gianecchini, se labareda Vicente, “vencedor”, ou seja, o varão que precisa mostrar o seu valor diante de todos e prover materialmente o conforto do lar. E por aí vai.
Uma escolha mais interessante é para o nome da pequena negra adotada pela vizinha de Eva: Clarinha, o que talvez indique que, apesar de asilar uma gaiato preta em seu lar, sua novidade família exige que ao menos no nome ela se adeque ao envolvente ao qual será integrada.
A história mostra as dificuldades de Eva depois se matrimoniar com Vicente, poucos anos depois que a mãe biológica das filhas gêmeas dele morre em um acidente. Quando o par tem um novo bebê, o garoto começa a mostrar sinais físicos de agressão, e cada vez mais coisas estranhas passam a sobrevir naquele lar.
Belmonte, que se destacou no primícias da curso com a estética desmesurada de filmes porquê “A Concepção”, de 2005, faz cá um filme em universal controlado, até meio lento, mas com uma tensão sempre contínua. Ele abarca as ideias temáticas de Montes com relativa eficiência: o cancelamento nas redes sociais; o menosprezo do marido pela atividade artística da mulher; o inveja de crianças diante do surgimento de uma madrasta; o desespero de genitoras de primeira viagem perante os choros misteriosos de um recém-nascido.
E durante a apresentação desses temas, o filme dá piscadelas a alguns clássicos do cinema gerador de sustos: há um naco de “Rebecca, a Mulher Inolvidável”, de 1940, de Alfred Hitchcock, mas também de “A Tara Maldita”, de 1956, de Mervyn LeRoy, e mesmo de “O Bebê de Rosemary”, de 1968, de Roman Polanski.
“Uma Família Feliz” é um thriller que se escora em suas habilidosas reviravoltas para funcionar enquanto entretenimento, portanto melhor evitar detalhes de trama. Mas fica evidente que, em nome do vitória das regras do suspense (e até do terror), Belmonte e Montes sabotam secção do potencial crítico inerente ao material.
Quando a grande verdade é revelada, o filme não tem tempo hábil para explorar devidamente o que levou o culpado a fazer o que fez. O longa abre mão de uma explicação persuasivo em termos sociológicos e prefere colocar tudo na conta de uma deturpação procedente —e, assim, o que parecia ser a proposta fundamental do longa, simplesmente se dissolve. “Uma Família Feliz” termina com o retrogosto de um filme de gênero rotineiro.
Há, no entanto, um momento muito específico em que a sátira social de veste é incisiva e direcionada: na breve cena final, depois dos créditos, um pormenor decorativo no envolvente é muito mais enfático e convidativo à reflexão do que todo o resto do filme. Quase o redime por completo.
Massafera tem os traços marcantes, volumosos, portanto em um filme em que a câmera passa tanto tempo grudada no rosto dela, deve ter sido um esforço e tanto para que um dobrar os lábios ou um transfixar de narinas fora de hora não se convertessem em um excesso de atuação. Tanto ela quanto Gianecchini têm limitações cênicas que exigem a atenção de um bom diretor, mas cá ambos se saem bastante muito, com as inflexões de drama e mistério necessárias aos seus personagens nos momentos devidos.
As duas meninas também estão eficientes, e embora os atores do elenco de espeque resvalem um naco para a caricatura, não são em zero inverossímeis. Até porque, o que se pode fazer quando as pessoas retratadas são inspiradas em gente que, na vida real, também possui uma farta ração caricatural em seus comportamentos?