O tempo se arrasta. Afonso Roitman e Helena Roitman aguardam com terror a chegada de sua mãe, Odete, à lar da tia, Celina, com quem vivem. Batem à porta. “Será que é ela?”, pergunta Celina, girando a cabeça bruscamente para a ingresso de sua mansão. O trio, interpretado por Humberto Carrão, Paolla Oliveira e Malu Galli, repete a ação mais de dez vezes, até que a direção sinta que a cena está perfeita para o remake de “Vale Tudo”, que estreia nesta segunda.
Os jornalistas portanto são escoltados para fora do estúdio —a próxima sequência, da chegada de Odete e de sua bulha com uma Heleninha bêbada, exige muita concentração dos atores, e a presença da prelo pode atrapalhar, dizem. Mas a tensão não deixa o set da mansão Roitman —e ainda se estende para os bastidores da TV Orbe.
É que, além de fazer jus a uma das histórias mais importantes da teledramaturgia brasileira, o remake marca a comemoração dos 60 anos da emissora e sucede “Mania de Você”, a romance que teve a pior audiência da história para o horário mais transcendente de sua grade.
Não são só seus filhos que Odete amedronta. A personagem também é motivo de inquietação de Debora Bloch, que assume o papel imortalizado por Beatriz Segall, e Manuela Dias, encarregada de reescrever o clássico de Gilberto Braga —centrado no embate entre uma mãe e uma filha, Raquel e Maria de Fátima, papéis de Taís Araujo e Bella Campos. No fundo, é uma reflexão sobre se vale a pena ser honesto num país porquê o Brasil.
Será que, quase quatro décadas depois da estreia da versão original, o público ainda tem tolerância suficiente ao politicamente incorreto para presenciar à vilã bilionária porejar ódio ao Brasil, à língua portuguesa e aos mais pobres em seu francesismo e italiano irretocáveis?
Bloch não arrisca palpites sobre a recepção dos espectadores, mas afirma que sua tradução não perderá a origem da personagem, marcada na versão original por frases porquê “o Brasil é uma mistura de raças que não deu claro”, “falar de Nordeste antes do jantar me faz perder o gosto” e “a solução para a violência é a pena de morte”.
“Eu não lembro exatamente porquê era, porque não assisti novamente à versão original e estou trabalhando somente em cima do texto da adaptação. Talvez algumas coisas não se repitam, mas ela diz horrores. Ela fala barbaridades politicamente incorretíssimas, mas que não parecem tão estranhas, porque a gente ainda vê as pessoas falando essas coisas”, afirma a atriz.
Um dos principais desafios do remake, dizem os produtores, é encontrar um estabilidade entre corresponder ao saudosismo de segmento dos espectadores —que esperam encontrar quase uma reencenação da original, com pouca ou nenhuma mudança, mas em subida definição— e confrontar esses fãs, atualizando as tramas ultrapassadas.
Mas o arquétipo da megera, encarnado por Odete, é um dos elementos que pouco mudou, diz Bloch. A atriz vê a personagem porquê uma “representação de um pensamento procrastinado, conservador, de extrema direita, e que ainda está por aí” e pode ser visto, diz ela, em figuras porquê Elon Musk, lembrando o gesto que o empresário fez na posse do presidente americano Donald Trump e lembrou para segmento do público aquele que era feito por apoiadores de Adolf Hitler.
“As pessoas estão mais loucas. Elas assumem mais esse pensamento”, afirma a atriz. “Quando a gente imaginou que teria um deputado defendendo torturador no Congresso? Que haveria pessoas indo para a rua tutelar a ditadura? Depois de tudo o que a gente passou, da redemocratização, da conquista do voto, de uma geração que sofreu, foi torturada, exilada ou morta nas prisões. É terrível Elon Musk fazer uma saudação nazista e isso ser normalizado. É tudo muito terrível, e a Odete representa esse tipo de pensamento.”
Manuela Dias, que tem em sua trajetória sucessos porquê “Paixão de Mãe”, “Justiça” e “Ligações Perigosas”, conta que já escreveu 90 capítulos —mais da metade da romance—, e os atores já trabalham nas gravações de cenas que vão ao ar só no final de abril —caso da própria chegada da vilã, prevista para o 25º capítulo.
A autora, no entanto, pode fazer mudanças conforme a reação do público, o que é praxe nas novelas, obras abertas por natureza. Se “Vale Tudo” era um retrato das vísceras do Brasil, é oriundo que, ao produzir um remake, Dias sinta premência de atualizações. Mas, para além da atualidade da vilã, há duas maneiras de ver a passagem do tempo.
Há quem diga que o Brasil pouco mudou e que os problemas são os mesmos, a exemplo da inflação. Em abril de 1988, um mês antes da estreia de “Vale Tudo”, a subida nos preços acumulada nos últimos 30 dias era de 19,29%, enquanto em fevereiro de 2025 essa taxa foi de 5,06%. Em números absolutos, é quase três vezes menos, mas o progresso de agora, em relação a janeiro, foi o maior para os meses de fevereiro em 22 anos.
Números à segmento, basta rever o primeiro capítulo da versão original para notar as semelhanças do Brasil de 1988 com o de 2025. Todos os personagens reclamam o tempo todo de porquê tudo está “pela hora da morte” nos supermercados, custoso demais, ou de porquê o Rio de Janeiro está mais perigoso do que nunca e porquê o desemprego prenúncio até profissionais qualificados, com ensino superior, caso do mocinho Ivan, papel que pertenceu a Antonio Fagundes e agora é de Renato Góes.
Não é provável fazer uma radiografia completa da passagem do tempo, visto que os indicadores usados hoje para estudar problemas porquê a pobreza e a rafa, por exemplo, têm séries históricas limitadas, que começaram em 2012, segundo o IBGE, o Instituto Brasiliano de Geografia e Estatística.
Mas a desigualdade ainda é subida. No índice de Gini, tido porquê referência pelas Nações Unidas para mostrar a diferença de renda numa população, o Brasil ainda figura entre os 20 países mais desiguais do mundo, apesar de seu coeficiente ter melhorado 15% nesse tempo.
A visão dos brasileiros sobre a prevaricação também piorou. O país registrou no ano pretérito sua pior posição na história do IPC, o Índice de Percepção da Depravação, realizado desde 2012 pela Transparência Internacional, ONG referência no matéria.
No Brasil de hoje, portanto, é provável que personagens porquê Marco Aurélio, papel de Alexandre Nero, ainda impactem o público —na versão original do folhetim, ele rouba milhões da TCA, a multinacional de aviação de Odete Roitman, sua sogra, e foge impune do país, dando uma banana ao testemunha, com a mão apoiada na refolho do antebraço oposto.
Não à toa. Naquela quadra, “Vale Tudo” cristalizou a insatisfação popular contra José Sarney, o primeiro presidente em seguida a redemocratização do país, ainda que não fizesse referências explícitas ao governo, que escapou de um processo de impeachment, mas terminou envolvido em escândalos de prevaricação.
Ao ser questionada se acreditava que poderia insuflar o insatisfação contra o governo de plantão, Manuela Dias disse a nascente repórter, quando começou a redigir o remake, que “a romance vai suceder mais dentro dela”. Lula, porém, já vive uma crise —sua aprovação é de 24%, a mais baixa de todos os seus mandatos, segundo pesquisa do Datafolha realizada em fevereiro.
Será portanto que, da mesma forma que os personagens antes criticavam o galanteio de Sarney ao subvenção ao álcool, por exemplo, agora veremos citações ao imposto para compras em sites internacionais, a famosa “taxa das blusinhas”, fim de tanta sátira ao governo Lula?
Manuela Dias é avessa a dar “spoilers”, mas se considera uma “otimista inconteste” e diz que sua visão de mundo é ancorada em pesquisas. Lembra, por exemplo, que apesar de não ser vasqueiro ouvir alguém clamando pela pena de morte porquê Odete —em 2018, essas pessoas formavam 57% da população, segundo o Datafolha—, o país não é armamentista —em 2022, 70% dos brasileiros se diziam contra facilitar o entrada às armas, ainda segundo o instituto de pesquisa.
É a partir dessa percepção, afirma o diretor artístico da romance, Paulo Silvestrini, que boa segmento das mudanças foram feitas. Exemplo disso é o par formado por Laís e Cecília, mana de Marco Aurélio. Elas deram vida àquele que é tido porquê o primeiro par entre duas mulheres numa telenovela, mas tiveram várias cenas vetadas pela Repreensão Federalista, que só deixou de subsistir em outubro de 1988, quase cinco meses depois da estreia da romance.
Na versão original, Cecília morre num acidente de carruagem. Gilberto Braga dizia que esse sempre foi seu projecto para a personagem, mas alguns espectadores viram a morte porquê uma forma de desmanchar o par. No remake, ela seguirá viva, e o par deve ter a chance de viver o seu desfecho felizes para sempre.
É uma mudança que a autora e o diretor dizem ser corroborada pela percepção atual dos brasileiros sobre o que constitui uma família —na última pesquisa do Datafolha sobre o tema, feita em 2022, oito em cada dez pessoas disseram confiar que a homossexualidade deve ser aceita por toda a sociedade.
Mas nem tudo precisa desse apoio objetivo, acrescenta Silvestrini. “Queremos o diálogo, e não cabe a nós nos posicionarmos diante de questões que cabem ao público, mas, para algumas coisas, somos definitivos —homofobia não, feminicídio não, racismo não. Para isso tudo é um não muito grande.”
Essa visão se traduz em mudanças porquê a extinção do trabalho infantil, que ainda existe —1,6 milhão de crianças vivem essa situação, segundo o IBGE—, mas não será mais visto na história, que tinha crianças trabalhando para Raquel, vendendo sanduíches na praia.
O elemento racial também será dissemelhante. Se a versão original tinha somente dois personagens negros —uma moçoilo pobre com vício em rapacidade e uma empregada doméstica—, desta vez negros também estarão espalhados por outros papéis, inclusive nos de protagonismo.
Bella Campos, no papel de Maria de Fátima, diz que isso traz mais realismo para a história. “A romance tinha dois personagens negros, estereotipados, e se dizia o espelho do Brasil, mas a gente sabe que a maioria da população é negra.”
Sua asserção encontra repercussão na de Taís Araujo. “Você tem a Raquel, que é uma mulher negra e que está no corre, na base da pirâmide, e Odete, que é uma mulher branca e está no topo da pirâmide. Eu ser uma mulher negra traz toda uma diferença, porque o jeito que o Brasil encara uma mulher negra é dissemelhante”, afirma. “Mas não é uma outra romance. A gente não renega o que foi feito. A gente celebra. Às vezes eu chamo a Maria de Fátima porquê a Regina Duarte chamava, por exemplo.”
Campos diz que, até o primeiro terço da romance, não haverá discussões explícitas sobre racismo, mas não vê isso porquê uma nequice. “A gente tem que pensar nas formas sutis que o racismo é aplicado hoje. Ele fica embuçado, mas a gente pode ver se prestarmos atenção.”
Outra grande mudança gira em torno de Helena Roitman, interpretada por Paolla Oliveira, que se preparou para o papel visitando reuniões de Alcoólicos Anônimos. “Quando a Heleninha passar dos limites, em vez de rir, talvez o testemunha queira acomodar essa mulher. Pode ser engraçado, pode tocar o mambo, a gente pode rir, mas vai ser doloroso não só para ela, mas para os espectadores também”, diz a atriz.
Mas há, segundo a autora, muita coisa que foi mantida, a encetar pela início, com “Brasil”, elaboração de Cazuza na voz de Gal Costa, e bordões porquê o “não transo violência”, de César Ribeiro, agora na pele de Cauã Reymond. “Desistir algumas coisas seria porquê refazer ‘E.T. – O Extraterrestre’ e não ter a cena dele cruzando a lua”, ela afirma.
No cerne desse conflito, os críticos de TV veem o libido de aprazer tanto aos conservadores quanto aos liberais, aos otimistas e aos pessimistas em relação ao país e, em última instância, à meio dele pelo governo Lula. Mas os produtores descartam essa teoria.
“Eu não tenho que manter zero. Tudo o que a gente mantém, a gente mantém porque a gente quer. Isso é uma coisa incrível da Orbe, que oferece um nível de liberdade criativa indecente”, diz a autora. “A romance não é minha. É de todo mundo. Mas talvez as pessoas possam esperar um pouco para ver se de traje gostam ou não gostam das nossas escolhas. Precisam presenciar antes.”