Vivemos Movidos Pelo Desejo De Infligir Dor Ao Inimigo

Vivemos movidos pelo desejo de infligir dor ao inimigo – 28/01/2025 – Wilson Gomes

Celebridades Cultura

Somos todos soldadinhos de uma guerra disseminada. Armados até os dentes e certos da justeza de nossa justificação, somos os combatentes generosos e destemidos sem os quais o mal prevaleceria no mundo. Às vezes, somos a última traço de resguardo do que é justo e sagrado; outras, estamos na vanguarda da guerra pela restauração do muito.

O campo de batalhas em que nos batemos inclui mídias sociais, bancadas de telejornais, programas de rádio e podcasts, comentários na prensa, debates acadêmicos, publicações literárias, discussões parlamentares, discursos públicos e tudo aquilo que um dia se chamou de esfera pública. O do dedo, uma vez que meio, recurso e redondel, permeia tudo isso, mesmo quando conversas, declarações e publicações eventualmente ocorrem offline.

Do do dedo, herdamos a facilidade e a flexibilidade de encontrar ou gerar grupos por identificação, de nos vincularmos a eles e, neles, forjarmos uma novidade persona pública. Nunca estamos realmente sós: sempre há uma tribo com a qual nos identificar, uma seita para seguir, uma partido à qual pertencer.

Mas também nunca estamos presos por vínculos definitivos. Nossas redes dispensam as complicações da convívio física ou os incômodos de regras rígidas, frequência obrigatória ou formalidades de matrícula. As pessoas se reúnem e se dispersam conforme causas emergem ou são substituídas, de harmonia com as injustiças e maldades que se destacam, e as convocações para a guerra, que são uma estável da vida do dedo. Não são as tribos que têm uma justificação; são as causas que formam as tribos que vão à guerra por elas.

Do universo do dedo também vem nossa atitude básica. Estamos sempre furiosos, horrorizados, ultrajados e borbulhando de indignação moral. Uma vez que a vida política foi inteiramente moralizada, a tribalização se baseia em virtudes. Sentimo-nos compelidos a agir para consertar um mundo moralmente quebrado —desde que juntos. Assim, acabamos todos uma vez que soldadinhos da justiça, guerreiros morais.

E, com isso, vem o pacote completo do combatente: inimigos, batalhas, turnos de vigia, medalhas por valentia, pelotões de fuzilamento e a sensação reconfortante de ter irmãos de armas —ou sororidade, quando for o caso.

Não é uma guerra de conquista, vale frisar. Todos os conflitos que criamos e alimentamos hoje são interpretados uma vez que guerras de reparação, expedições punitivas. Se chutamos, atiramos, pisamos ou humilhamos, é porque estamos retaliando alguém que, em qualquer momento, cometeu um erro.

Essa é uma guerra movida pelo ressentimento, pelo libido de infligir ao inimigo uma exemplar da dor que supostamente ele, ou alguma coisa que o representa, causou. Se não foi ele quem cometeu diretamente a ignomínia, foi alguém de sua linhagem, seu gênero, sua religião, sua raça. Sempre há alguém a ser punido, uma penitência a ser imposta, um exemplo moral a ser oferecido para que a sociedade ande na traço e saiba que o tempo da retaliação chegou.

Marcha-se contra tudo, pois o que não falta no mundo são injustiças a serem punidas. Basta que um vigilante identifique um infrator, e a ordem é clara: queima no fascista. Os vigilantes podem ser jornalistas, intelectuais, professores e até donos de editoras, todos comprometidos com a sublime missão de melhorar o mundo, mesmo que isso signifique ignorar deontologias profissionais.

Identificado e apresentado o mal, todos os guerreiros da justiça têm a obrigação moral de participar da punição. E todos os punidos têm a obrigação moral de admitir, penitentes, as penas decretadas pela sanha punitivista do coletivo moral, mesmo que incluam castigos extremos: a impossibilidade de voltar a trabalhar no próprio ramo, a ruína completa de sua reputação e o estigma de ser perpetuamente lembrado uma vez que um pária desprezível, pois a memória do dedo é para sempre.

Não preciso nem dar exemplos do linchamento moral desta semana. Todos sabem do que estou falando, porque todas as semanas são iguais. Não importa mais nem sequer qual o teor das batalhas que se sucedem dia depois dia neste momento em que tudo é política, e política não é mais que moralismo. Somente se trocam os atores; os papéis e a estrutura do drama permanecem os mesmos.

Há sempre uma vítima, um infrator, uma denúncia, a punição, um remorso público —geralmente seguido de mais punição— e a persuasão dos linchadores de que estão do lado da virtude. “Desculpem o transtorno, estamos consertando moralmente o mundo”, dizem os cruzados morais de ar-condicionado depois mais uma jornada da sua guerra santa.


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Folha

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