Zeca Pagodinho Faz 40 Anos De Carreira Nostálgico Do Samba

Zeca Pagodinho faz 40 anos de carreira nostálgico do samba – 18/01/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Zeca Pagodinho está atarefado. Atende ligações e conta moeda para fazer um pagamento enquanto dá entrevista —alguma coisa que notoriamente odeia, só menos do que posar para fotos. Em uma das unidades do Bar do Zeca, temático sobre o sambista, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, ele brinca que a última vez que ganhou no jogo do bicho foi três dias detrás, mas pouca coisa, só R$ 900.

De muitas maneiras, Zeca, 64, continua o mesmo. Prepara o início da turnê de 40 anos de curso, a iniciar pela gravação de um show no estádio Nilton Santos, o Engenhão, em 4 de fevereiro. O repertório é aquele consagrado por ele, com participações de parceiros antigos, caso de Alcione, Seu Jorge, Jorge Aragão, Xande de Pilares, Diogo Nogueira e Marcelo D2, e novos, porquê Djonga.

Mas seu entorno mudou. A malandrice, ele diz, era dissemelhante de quando Beth Roble o alçou de partideiro e compositor frequente nas rodas de samba do Rio a tradutor, no primórdio dos anos 1980, dando início à curso de quatro décadas, uma das mais bem-sucedidas da história da música brasileira.

“Até na maneira de conversar”, diz. “Malandro antigamente não falava ‘a gente vamos’. Os caras sabiam falar. Liam. [O pessoal do bicho] também. No subúrbio, a gente vivia no meio de tudo.”

Esse Rio de Janeiro de malandros boêmios e românticos, e seus causos, se transforma em trova nos versos de Zeca desde os tempos das rodas de samba às quartas-feiras no Cacique de Ramos. Mas a Cidade Maravilhosa, ele diz, também não é mais a mesma.

“Tudo está muito mais violento”, diz. “Eu ia [ao morro da] Mangueira, mansão de Tia Zica, mas morreu ou sumiu todo mundo. Não dá. [Não vou mais] também por desculpa da violência. Tinha um mocotó na quarta-feira, aí vinha um com um pandeiro, fazia um samba. A boca ficava num lugar lá no esquina. Hoje parece que a boca é o morro inteiro.”

Para Zeca, é uma mudança em curso já de uns 20 anos para cá, e “parece que vai piorar”. “Não consigo ver uma coisa boa. Acho que ninguém consegue”, diz. “Deixaram chegar nesse ponto. As crianças sem escola, sem comida. Tinha um companheiro meu que falava que a lazeira não tem companheiro. Onde a lazeira chega, a violência chega junto. E sem ensino.”

É dessa estação de mocotó e samba no morro que datam uma secção das centenas de fitas cassete que Zeca redescobriu em sua mansão na pandemia. Elas contêm gravações de músicas e conversas, mas deixam o sambista nostálgico a ponto de evitar mexer no registo em procura de composições inéditas.

“Me dá tristeza, porque foi um tempo muito bom”, diz. “Muita gente já morreu. Aí tem lá as nossas conversas. Aí alguém toca um negócio e diz, ‘lembra daquele samba?’ ‘fiz esse samba essa noite’. Era assim. Ligava e ia gravando. Coisa de 30, 40 anos detrás.”

Há alguns anos, achou nas fitas uma música de Monarco —histórico compositor da Portela de quem Zeca era fã ao ponto de, na mocidade, persegui-lo em um ônibus para trovar para ele suas canções favoritas. Gravou “Romaria” em 2019, no álbum “Mais Feliz”.

Há nas fitas também algumas colaborações de Zeca com Arlindo Cruz, o maior parceiro de sua curso, que desde 2017 sofre as consequências de um acidente vascular cerebral. O mais ilustre morador de Xerém, província de Duque de Caxias, no Rio, não conseguiu visitar o companheiro, que vive em estado quebradiço, até hoje.

“As músicas me levam para lá, onde a gente estava. Fico ‘caramba, esse dia foi na mansão dele, no Morro do Fubá’. Lembro daqueles amigos todos brincando, bebendo. Fico triste por saber que isso não vai voltar mais. Às vezes consigo fazer isso em Xerém, mas não com a mesma intensidade.”

Zeca também encontrou composições dele que não quer retomar porque já não pensa mais porquê antigamente. Ele cita “Amarguras”, gravada pelo Fundo de Quintal, que diz na letra “de que vale a vida se eu não tenho a sorte”. “Não posso mais trovar isso. Antes eu não tinha, mas hoje tenho a sorte”, diz.

É uma decisão que também mostra porquê Zeca tem apreço por aquilo que é de verdade. Só quer trovar aquilo que faz sentido para ele. Não gosta de sorrir em fotos com fãs quando está triste, e pede a fotógrafos que não o dirijam durante os cliques —preza pela espontaneidade.

“Lodo nas Ruas”, clássico dele com melodia de Almir Guineto, foi escrita para uma paixão que não foi para frente. Mas, no caso dessa cantiga, ele diz, “combina sempre”. “Essa música fiz para Mônica Evelyn. Hoje, ela deve ter uns 60 anos. Não sei. Nunca mais a vi.”

Mais recentemente, Zeca abriu alguns cadernos antigos depois a cantora Teresa Cristina ter pedido músicas a ele para gravar um álbum interpretando só composições dele. De um deles, também, resgatou uma letra para uma parceria —a sua quarta— com o sambista Moacyr Luz.

Achou também uma letra escrita ao lado de uma foto do tipo Polaroid de uma mulher nua, entregue a Zeca por ela “Acho que eu escrevi aquele poema para ela, mas não lembro quem é. É muito velho. Romântico. Não lembro se beijei nem se cheguei a conhecê-la. Foram muitos beijos pelo mundo.”

Antes de ser trazido por Beth Roble para o meio dos holofotes, Zeca queria ser exclusivamente compositor. Desprezava —e despreza até hoje— a cultura de notoriedade, sejam as selfies ou os pedidos de autógrafo, que o impede de ter uma vida simples, alguma coisa que só consegue quando está em Xerém.

Com 14 ou 15 anos, Zeca diz, ele já escrevia. Nessa estação, fez um poema no estilo acróstico com o nome da filha de uma vizinha, Alessandra, quando ela nasceu. Ouvia seresta e jovem guarda com a família, e era chamado de velho por gostar de sambas antigos de Elizeth Cardoso.

Queria estudar instrumentos, mas desde a mocidade não pôde porque tinha que trabalhar —motivo pelo qual criou o Instituto Zeca Pagodinho, em que oferece aulas de música. Entrou de vez nesse universo quando conheceu Arlindo Cruz e passou a frequentar rodas de samba, em próprio a do Cacique de Ramos.

Antes do Cacique, diz Zeca, o samba da velha guarda era “reto”. “Lá, [os instrumentistas] tocavam baixinho, para se ouvir quem estava cantando. Tinha muita gente, mas todo mundo tocava com disciplina e suavidade. Hoje em dia ficou tudo muito rápido, veloz, não dá nem para ouvir a letra.”

Ali, o samba passava por uma transformação, com a geração e inserção de instrumentos porquê tantã e repique de mão, em encontros de onde saíram nomes porquê Fundo de Quintal, Jorge Aragão e Almir Guineto, além de Zeca e Arlindo, entre outros, muitos deles apadrinhados por Beth Roble.

Era um jeito novo, pessoal e extremamente influente de se fazer samba —alguma coisa que intimidava Arlindo. “Lá não dá para a gente entrar não”, ele dizia a Zeca. Mas os amigos chegaram na roda e, num pausa, pediram para trovar uma música. “Começamos a trovar e eles começaram a voltar, aí passamos para a roda da frente”, diz Zeca.

Foi quando ele ganhou reputação de partideiro de mão enxurrada, Beth o chamou para gravarem juntos “Camarão Que Dorme a Vaga Leva”, elaboração de Zeca, com clipe exibido no Fantástico, da Orbe, e o resto é história. Nessa estação, ele diz, pagode não era sequer nome de gênero músico.

Hoje, Zeca é adorado por rappers, desde quando Marcelo D2 o citou porquê principal referência em uma entrevista dos anos 1990. Mais recentemente, conheceu o mineiro Djonga. “Ele conheceu o pessoal do quintal do Pagodinho, teve uma lição cá. Ficou amarradão. Pediu ajuda para montar repertório, quer gravar samba.”

Em relação ao funk, Zeca vê semelhanças em porquê o gênero hoje é discriminado, por questões sociais e de raça, de forma parecida porquê aconteceu com o samba décadas detrás. “É uma pena porque tem tanto face bom no funk”, diz. “Mas o samba não tinha tanto isso de apologia de violação.”

Mas na vitrola de Zeca, que só usa celular para “vincular, atender e tirar foto dos meus netos”, a música que toca vem de outros tempos. Assim porquê sua TV fica ligada no meato Viva e na Orbe, onde ele assiste a novelas antigas e à versão original de “Escolinha do Professor Raimundo”.

De certa maneira, Zeca vive numa temporalidade própria, é remanescente de uma era em lenta dissolução, que pulsa quando ele sobe ao palco, porquê fará em sua próxima turnê. Mais que um tradutor vasqueiro, com o microfone ele se torna condutor de uma sentença que tem força para dar sentido a um país, que evoca modos de vida em atrito com a dificuldade tecnológica e a desigualdade social de um capitalismo avançado.

Enquanto dribla a nostalgia melancólica, Zeca não deixa de comemorar a vida —talvez sua qualidade mais reconhecida, além do talento músico— pois sabe que não há coisa mais feia que gente chorando de bojo enxurrada. Quando olha para trás, comemora que se tornou companheiro de ídolos porquê Monarco e Martinho da Vila. “Que vida maluca do caralho, né?”, diz. “E boa demais. Para quem sabe viver. Tem gente que não sabe.”

Folha

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