Ao se mudar para Berlim, em 2009, Adelaide Ivánova estava ferida pelo traumatismo de um agravo sexual sofrido pouco antes no seu Recife natal.
Era portanto mais conhecida pelo trabalho porquê fotógrafa —diz que, até 2014, buscava resolver questões existenciais e políticas por meio de imagens. A partir dali, afloraria com mais força a poeta, e o acerto de contas literário com a violência de gênero veio porquê um vómito catártico em “O Martelo”, o seu mais festejado livro, ganhador do Prêmio Rio de Literatura em 2018.
Publicado primeiro em Portugal em 2016, “O Martelo” saiu no Brasil em 2017 pela Garupa e foi editado em outros cinco países (Argentina, EUA, Reino Unificado, Grécia e Alemanha). Em 2019, a sátira Heloisa Teixeira escreveu que Adelaide já era portanto uma “poeta madura” e “a grande referência da trova da novíssima geração de poetas”.
O incômodo pela transmigração perdurou e foi sendo elaborado por anos, até desaguar em sua novidade obra, “Asma”, recém-lançada pela editora Nós.
Vashti Setebestas, a protagonista e narradora, meio mulher meio bicho, vaga pelo mundo ao longo dos tempos sendo enxotada, refugiada eterna enfrentando —sempre insubmissa— a vexame masculina e o poder em suas tantas manifestações.
Adelaide estará neste domingo, dia 30, na Feira do Livro do Pacaembu, onde participa de um debate com a poeta gaúcha Mar Becker. Na segunda, 1º de julho, lança o livro no Rio; e na sexta, de novo em São Paulo, na livraria Frase Popular.
Libelo antimachismo, antixenofobia e anticapitalista, “Asma” traz os elementos centrais da obra de Adelaide, um feminismo que mistura inquietações pessoais com engajamento político. Mas talvez a originalidade maior do livro seja denunciar as feridas da transmigração feminina.
“Eu achava que toda transmigração era voluntária, a não ser quando você é expulso. Aí comecei a politizar e sobretudo pesquisar sobre transmigração feminina”, observa a autora. A leitura do livro “O Ponto Zero da Revolução”, de Silvia Federici, foi crucial nesse processo.
“Ela diz que, até os anos 1990, a maioria dos migrantes do mundo eram homens, e a partir dali isso muda. Hoje em dia, a maioria é de mulheres, que emigram sozinhas, sobretudo por questões econômicas, mas também em procura de pundonor de vida.”
Ivánova de início pensou que sua própria transmigração tivesse sido voluntária. “Eu mesma comprei minha passagem de avião para a Alemanha. Só que uma série de coisas me levou a tomar essa decisão. Logo perguntei: e por que minha mãe foi [do interior] pro Recife? Eu achava que ela tinha ido voluntariamente. Aí fui pesquisar a história de movimento da minha família [cheia de mulheres] e entender que nenhuma das movimentações era voluntária.”
A precariedade da quesito de imigrante em Berlim e um trabalho voluntário com grupos de refugiadas em condições mais adversas que a sua reforçaram a percepção. “Muitas mulheres emigram por guerras, outras por questões econômicas, outras simplesmente porque em seu país de origem, no Brasil inclusive, o índice de feminicídio, de violência sexualizada é tão grande que você sai em procura de uma vida digna.”
Submergir nessa investigação fez com que “um mundo crítico” se abrisse para a poeta, cuja trilha originário foi tentar sintetizar essas questões em um livro. Ivánova já tinha um material poderoso, que ela define porquê “o embrião” da pesquisa: em 2015, foi selecionada para uma residência artística na Catalunha, onde entrevistou refugiados da Guerra Social Espanhola.
Misturar elementos factuais ao texto poético é outra propriedade marcante na obra dessa ex-jornalista, que chegou a trabalhar em Redação, no recifense Jornal do Commercio.
“Asma” se vale também de entrevistas com depiladoras em salões do Recife e de Berlim, de documentos de cartório em Taquaritinga do Setentrião (cidade de sua família, no áspero pernambucano) e de pesquisas em acervos de jornais dos anos 1930 a 1950 que portanto escancararam sem meias-palavras a xenofobia contra nordestinos.
“Levo a apuração muito a sério. Simples que, sendo trova, você apura com seriedade e faz com ela aquilo que você quiser. Logo a apuração me dá os diamantes de informação, de conhecimento, e a trova diz, pronto, agora tu pega esse diamante bruto e faz um grudar, faz o que tu quiser ali com isso.”
A carpintaria, ou ourivesaria, empreendida em “Asma” resultou numa heroína —palavras de sua criadora— “iconoclasta, esculhambatória e, às vezes, malcriada”, mas dos quais “devir é de empatia radical”.
Vashti Setebestas toma seu prenome da rainha pérsio banida pela recusa em se exibir aos convidados do marido, o rei Xerxes. Com o humor escrachado que perpassa todo o livro, repleto de referências pop contemporâneas, a autora descreve assim o incidente:
“No dia em que seu rei mandou expressar/ que era pra eu fazer strip pros seus amigos/ eu disse não, bicha, chega,/ tá bom de esculhambação/ catei meus panos de bunda e saí/ mundo afora/ peta foram eles que me expulsaram/ kkk/ isso foi na idade do ferro (…)”
A certa profundeza desse “homérico escalafobético”, Vashti se transmuta em sete bestas (daí seu sobrenome): vaca, boi, piranha, cabra, mula, guaiamum e “la ursa” (personagem de um folguedo pernambucano). Cada uma ganha um poema. O da piranha, um dos pontos altos do livro, é um petardo contra o falso moralismo reinante.
Bicho “que não se acaba”, que “não entrou nem entrará em extinção”, a piranha é o “cabrão expiatório do viçar alheio/ fim do recalque daqueles/ que querem me dar de consumir/ ou dar ou consumir cu/ mas não ousam/ sem coragem de negar a monogamia/ tampouco de praticá-la/ enchendo as parceiras de doença e gaia/ culpam a mim piranha da terreno/ por ter me livrado de caçuá e cangalha”.
Embora a autora ressalte que “Asma”, antes de preocupações estéticas, reflete sobretudo suas preocupações atuais porquê cidadã, o livro bebe em incontáveis influências literárias, das tragédias gregas (sobretudo Ésquilo e Eurípedes) à prosa engajada de Jorge Estremecido e Permínio Asfora —um piauiense de progénie palestina de grande recepção sátira nos anos 1940 e 1950, que sumiu no cânone dos nossos grandes romancistas—, mas também na escrita híbrida de Pagu em “Parque Industrial”.
Permínio e Estremecido a auxiliam a expor o antinordestinismo histórico e ainda em vigor no país. “Uma vez que se fala do Nordeste em estação de eleições, não é? Ou a gente salvou o Brasil ou a extrema direita, os bolsonaristas, dizem que o Nordeste fodeu o Brasil de novo. E fica uma naturalização disso. Uma vez que se não tivesse motivo de a gente ter tendências de esquerda, digamos assim. E muita xenofobia ligada a isso.”
Adelaide —dos quais Ivánova, russo, foi uma homenagem da mãe a uma personagem de Dostoiévski— considera que a escol econômica de Pernambuco tem uma “nostalgia aristocrática, muita saudade da estação que era o lugar mais rico do Brasil, da estação em que era escravocrata. E se comporta de uma forma equivalente, na forma porquê trata o trabalhador”.
O que não a impede de provar a “genealogia de resistência na nossa região”, expressa em “Asma”, num capítulo devotado a dez revoltas populares históricas, com papel feminino preponderante.
“No Nordeste, a classe trabalhadora se constitui e teve de lutar pelos mínimos direitos pelo menos 200 anos antes do que em várias cidades do Sul e do Sudeste, que é de onde vem a xenofobia. O bairrismo não leva a gente a lugar nenhum. Mas o pensamento crítico leva.”
“Asma” traz um léxico impregnado de “recifês” e “nordestês”, que a autora —meio brincando, meio a sério— diz reconhecer porquê “línguas autônomas do português solene”. “Toba”, “amostrada”, “manzanza”, “priquito”, “en-ein”, “xexeira”… É uma profusão de termos. Não há vocabulário, de caso pensado.
“Tu já visse um vocabulário de sudestinês num livro? Porque se leva em consideração que esse sudestinês já vai estar na Orbe, na Record, na Jovem Pan, e não se precisa. E não é problema meu, porquê autora nordestina, que tenha se tornado consenso que a língua franca brasileira é o brasílico de televisão.”
Também graças à veia de pesquisadora da autora, “Asma” bebe na poética do cordel e da cantoria, formas que ela conhecia de causa. Mas, para usá-las no livro, foi estudar, ler com pormenor, entender a métrica, os diferentes tipos de rima e sobretudo reprofundar nesse universo, durante um período instalada em Caruaru, onde vive sua mãe.
Para se manter em Berlim, Ivánova já trabalhou de garçonete, babá, padrão vivo, recepcionista de salão de venustidade, assessora de deputada de esquerda, entre outras atividades. É ativista de movimentos de luta por moradia e diz que a militância a inspira para a escrita poética, sobretudo na tarefa de recrutar pessoas, quando “você tenta convencê-las de que aquele problema não é originário e é solucionável”.
Sonha em voltar. “Eu preferia estar em lar, em Gravatá do Ibiapina, em Gravatá do Jaburu”, diz, citando o nome atual e o nome vetusto do região de Taquaritinga do Setentrião de onde vieram os seus.