Ainda Estou Aqui Converte História De Filho Numa De Mulher

Ainda Estou Aqui converte história de filho numa de mulher – 05/11/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

O livro “Ainda Estou Cá” surgiu de uma epifania de Marcelo Rubens Paiva, porquê ele diz com frequência. “Ao longo do tempo, percebi que a grande heroína da história é minha mãe”, registrou a uma revista, resumindo seu tom elegíaco.

“Minha mãe esteve na toga de todos os jornais no dia seguinte. Com o atestado de óbito levantado, prazenteiro. Uma guerra foi vencida”, escreve o rebento sobre o momento em que seu pai, Rubens Paiva, foi enfim reconhecido porquê morto pela burocracia do Estado que o torturou e assassinou 25 anos antes. “Angústia, lágrimas, ódio, somente entre quatro paredes. Foi a minha mãe quem ditou o tom, ela quem nos ensinou.”

Eunice Paiva, no livro, é quase sempre “minha mãe”. No filme que chega aos cinemas nesta quinta-feira, ela perde o “minha” e, sem perder o “mãe”, se torna uma mulher.

O longa de Walter Salles secção de um roteiro de intenções cristalinas de Heitor Lorega e Murilo Hauser, operando de face uma mudança de primeira para terceira pessoa. Não há mais a mediação do rebento: para entender aquela mulher encurralada numa situação limite, é preciso se concentrar nela com foco e diligência.

É evidente que Marcelo ainda está cá, saracoteando pelo filme porquê um menino travesso e, mais velho, na performance irreverente de Antonio Saboia. Mas a mãe não é vista através dele: a câmera está na profundeza de olhos adultos.

É essa recalibragem que permite que Fernanda Torres, numa versão corretamente percebida porquê divisor de águas em sua curso, a encarne sem o filtro mitológico da maternidade.

Não importa quanto talento tenha um responsável —e é evidente que Paiva faz um esforço de sobriedade no livro ao descrever a curso e as imperfeições da mãe—, ninguém é menos capaz a redigir de forma objetiva sobre uma pessoa que seu rebento. Está perto demais do sol.

Não por contingência, dois dos momentos mais memoráveis do filme não existem no original, porque se passam numa subjetividade inacessível àquelas cinco crianças —apesar de ser importante que elas estejam ali, às margens da cena.

A primeira é quando Eunice volta do cárcere, imunda e fragilizada, e toma um banho demorado antes de se prostrar na leito. Com os filhos, não consegue mourejar agora. A longa limpeza, severa e aflita, abre as portas para uma transformação ritualística dentro da mulher.

A segunda deve ser a cena mais comovente do filme, quando Eunice leva os filhos à mesma sorveteria em que a vimos com o marido qualquer tempo antes. Agora, ele está morto e ela sabe. A câmera acompanha o olhar da mulher para casais e famílias íntegras, inteiriças, porquê a dela nunca mais vai ser, e o silêncio basta para que entendamos de onde vem a lágrima que brota à nossa frente.

As cenas não estão no livro, em que Marcelo reconhece não dar conta das multitudes da mãe. “Eunice não foi uma só. Existiram algumas que não se contrapunham, completavam-se, não se contradiziam, somavam-se, reconstruíam-se da tragédia, alimentavam-se dela para renascer.”

As memórias do rebento narram suas peripécias de juvenil em paralelo à história de Eunice, das broncas que levava por ser arteiro até as meninas em que tinha tesão, na literatura-moleque que fez de “Feliz Ano Velho” um dos maiores best-sellers do país.

O livro de 2015 foi a primeira irrupção mais detida do responsável no gênero autobiográfico desde aquele sucesso de 1982, movida por duas urgências: o Alzheimer que levava a memória de sua mãe e a Percentagem da Verdade que resgatava a memória de seu pai.

A adaptação cinematográfica, sabiamente, evita diluir a narrativa em diversos afluentes de memória, ou pior, tentar emular na tela a voz literária de Marcelo. A escolha por outro tom e estrutura se revela acertada, porquê mostram duas diferenças essenciais.

Primeiro, quando Eunice é levada para a prisão e submetida à violência arbitrária da ditadura, o livro intercala a narração com a temporada do pequeno Marcelo, ao mesmo tempo, protegido no sítio de amigos em Araras. O filme ignora o rebento, e a via-crúcis da mãe acumula muito mais força.

Mais adiante, o responsável conta de quando finalmente viu sua mãe chorar. “Chorou tudo o que havia segurado, tudo o que reprimiu, tudo o que quis”, escreve. “O rompimento de uma represa.”

Essa represa não se rompe no filme. Torres contou em entrevista recente ao jornal O Orbe que Salles não usou nenhuma das várias tomadas em que ela chorava. “Ele cortou todas!”

É uma escolha que deixa o testemunha mais imerso na personagem, mais intrigado por suas engrenagens sentimentais, por aquilo que ela não mostra. No lugar da pergunta “por que minha mãe não chora?”, há a asserção “Eunice não chora na frente de seus filhos”. Aí está toda a diferença do mundo.

Folha

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