“Escrevo porque nasci sem memória.” Nas primeiras páginas do breve romance “No Muro da Nossa Morada”, Ana Kiffer já demonstra a imensidão da sua proposta literária de investigar os efeitos da ditadura militar na dinâmica da sua família.
Relatos de ex-militantes presas e grávidas durante o regime serviram de base para a ficção publicada na Estabelecimento do Tempo, um diálogo entre mãe e filha tecido décadas depois, em resposta ao silêncio que pairava no ar.
“Esse livro é uma reivindicação por uma existência, tanto dessa mãe que não pôde falar na idade, quanto das mulheres da geração dela, silenciadas pelo susto de terem sobrevivido”, diz a escritora, professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A conversa, que nunca aconteceu em vida, elabora a legado dos conflitos geracionais e dos incômodos diante do silêncio. “A anfibologia do vazio e da fusão era importante para ajudar a produzir a intervalo [entre as personagens].”
As lacunas não são exclusivas dessa história, uma vez que mostra o sensível romance “Sobre o que Não Falamos”, publicado na editora 34 por Ana Cristina Braga Martes. Nele, uma jovem moçoila que mora com os avós não compreende o desamparo dos pais e procura respostas em um contexto de opacidade e meias-verdades.
“Para saber deles, ela também precisou saber mais de seu país”, conta a autora, que é também socióloga e doutora pela Universidade de São Paulo. “Quando comecei a redigir o livro, eu tinha a cena de uma pequena sentada na cozinha dos avós dela, e aquela mansão tinha um silêncio que pesava. Tentando rastrear essa sensação, descobri que o silêncio era de uma ditadura.”
Braga Martes, inclusive, exemplifica a presença desse não dito com Eunice Paiva, vivida por Fernanda Torres no filme “Ainda Estou Cá”, adequado do livro de Marcelo Rubens Paiva.
“Ela fala muito pouco, a sentença dela diz muito mais. Eu acho que é impossível retratar a ditadura sem tocar nesse silêncio mórbido e imposto da exprobação, da prisão, da perseguição, da morte.”
Ao convergir a história da família Paiva em Eunice, Walter Salles discute o papel das mulheres na memória daquela idade, assim uma vez que as escritoras. “Eu tenho a sensação que elas podem falar sobre esse tema suscitando novas sensibilidades”, diz Kiffer.
Apesar de histórias sobre a ditadura militar no Brasil não serem um pouco inédito, desde meados de 2010 uma houve mudança nesse registro.
“As mulheres começam a publicar suas narrativas da ditadura principalmente com a preparação da Percentagem Pátrio da Verdade [que entrou em vigor em 2012]. Elas tiveram a premência de um tempo muito maior para elaborar essas histórias, ainda publicadas por pequenas editoras ou de forma independente”, diz Eurídice Figueiredo, autora dos livros “A Literatura Porquê Registro da Ditadura Brasileira”, da 7Letras, e “Mulheres Contra a Ditadura”, da Zouk.
Neste último, lançado em setembro, a professora reúne sua pesquisa sobre os escritos daquelas que viveram ou são filhas dos que viveram a tempo autoritária. “Esses textos são pouco estudados e divulgados, até por isso dediquei a primeira secção do meu livro para a historiografia das militantes da idade.”
O resultado do trabalho minucioso de mapeamento dessas publicações mostra a diferença entre a ficção, mais feita por autoras mais jovens, e os relatos, escritos pelas que foram encarceradas e torturadas.
“A literatura mais recente me tocou por mostrar uma vez que essas autoras estavam voltadas para a questão da violência sobre o corpo das mulheres, das militantes presas. É um pouco que me pareceu novo”, aponta ela, que, na idade, fazia secção da resistência estudantil e foi exilada para a França.
“As militantes que tentam descrever as próprias vivências costumam ter uma narrativa mais linear e realista. Já a literatura contemporânea é um outro tipo de narrativa, mais distanciada. As autoras estão lidando com fantasmas, com grandes interrogações.”
Para Ana Kiffer, além da Percentagem Pátrio da Verdade, o aumento dessa presença também coincide com a quarta vaga do feminismo. “É um novo sopro de voz, de tomada da termo pela mulher. Estamos vendo a premência de reescrita da história do Brasil sob outra perspectiva, das mulheres, das pessoas negras, dos povos originários. E essa retomada passa pelas vozes dos que não falaram [antes].”
Ana Cristina Braga Martes complementa. “A questão feminista permite descrever isso de maneira mais ampla, e aí você percebe uma vez que a ditadura junta machismo, violência, autoritarismo e racismo.”
A publicação das obras não só incita a possibilidade de um diálogo sobre o pretérito, mas também abre portas para conversas importantes no presente.
“A memória não é um oferecido, ela é uma jacente elaboração, porque pode se perder, se transformar em esquecimento. Vivemos um tempo no qual esse campo está em disputa, e a própria memória da ditadura começou a ser questionada. Ouvimos com mais frequência discursos de que ela não aconteceu, era uma invenção, ninguém foi torturado”, aponta Patricia Machado, pesquisadora e professora da PUC-Rio.
Autora do livro “Cinema de Registro: Imagens e Memória da Ditadura Militar”, da Sagarana, ela evidencia que o marco dos 60 anos do golpe, escoltado de livros e filmes tratando do tema, “mobiliza a sociedade a pensar na elaboração da memória”.
“O presente nos coloca novas questões, nos permite olhar para trás e fazer outras perguntas, pensar sobre o que não foi pensado mas estava ali.”