“A frase ‘literatura infantil’ é condescendente e ofensiva e me parece também redundante, porque toda literatura é, no fundo, infantil”, escreve o chileno Alejandro Zambra.
“Na verdade, nós somos o que sobrou da puerícia”, diz ele, durante uma entrevista em São Paulo. “Depois de um doutrinamento, de uma aprendizagem cega, você chega a ser alguém que não é zero além de um revérbero pálido de quem você era. De tanto obedecer, você virou adulto.”
Seu novo livro se labareda, justamente, “Literatura Infantil”. Nasce das anotações feitas posteriormente nascer seu rebento, Silvestre, e é dirigido a ele com açúcar e afeto. Segmento também de seu pai. E da percepção de que “nossos pais tentaram, à sua maneira, nos ensinar a ser homens, mas não nos ensinaram a ser pais”.
Os textos são ternos e jubilosos, porquê costuma ser a literatura de Zambra —ele conta de uma editora italiana que, depois de algumas taças, lhe disse: “seus romances são infantis demais para o meu paladar”. “Por que você escreve para adultos quando deveria redigir para crianças?”
De início, o observação o incomodou. Depois, ele chegou à desenlace de que a sátira não fazia sentido.
“Um dia meu rebento estava pondo seu tênis, um tênis muito fácil de colocar, e estava muito feliz”, conta ele ao repórter. “Ele dizia ‘instruções para colocar o tênis: primeiro você encontra qual é o pé correto’. E ria muito. Fazia aquilo delicioso das crianças, de demorar a piada para gozar mais dela. E me lembrei na hora do texto de Julio Cortázar, ‘Instruções para Chorar’”.
Em “História de Cronópios e de Famas”, o prateado elabora uma série divertida de textos em forma de manual, porquê “Instruções para Trovar” e “Instruções para Subir uma Escada”. Em zero diferem, segundo Zambra, do que seu rebento quase bebê fazia naquele momento.
“Palato da imagem do artista porquê alguém que quebrou a perna e tem que reaprender a marchar. Essa desautomatização de tudo é muito própria da literatura”, diz ele —parece o mesmo olhar fresco, encharcado de magnificiência, que as crianças dirigem ao mundo.
Há um treino útil de escrita criativa chamado “binômio imperfeito”, que consiste em relacionar numa história dois objetos que estão muito distantes no mundo real —um computador e uma margarida, uma baleia e um espaguete.
Zambra conta, no novo livro, que começou “a instrução futebolística” de seu rebento com uma reinação não muito distante disso: narrava partidas imaginárias, com voz de locutor, entre “Animais do Mar versus Animais Terrestres, Dinossauros versus Não Dinossauros, Dedos das Mãos versus Árvores & Flores, Meses do Ano versus Vulcões do Chile”.
Não será surpresa a ninguém que “Literatura Infantil” fuja de qualquer tipo de narrativa convencional, porquê estão acostumados os fãs de obras porquê “Formas de Voltar para Lar”, “Bonsai” e “Múltipla Escolha”. E há muitos deles no Brasil —tanto que Zambra veio a São Paulo para lançar seu livro, na próxima segunda-feira, e participar do Festival Serrote, no Instituto Moreira Salles, nesta sexta e sábado.
É ali na avenida Paulista, cansado de uma longa viagem de avião que o apartou de seu rebento na Cidade do México, que Zambra conta que o livro começou justo porquê um “quotidiano de apego”. Anota por exemplo, no 31º dia de vida de Silvestre, que “o promanação de um rebento anuncia um horizonte vasto do qual não faremos secção totalmente”.
Com o virar das páginas, avança para textos mais elaborados, ainda muito colados à experiência de pai. “O menino dormia placidamente quando eu pedi a ele, com meu olhar, que não engatinhasse nunca, que não caminhasse nunca, pois não era necessário: eu poderia levá-lo no pescoço a vida inteira.”
Na segunda metade, surgem contos que confundem a ficção com a autobiografia e parecem mais sedimentados pelo tempo e pela artesania —mas continuam a carregar a suspeita de terem sido escritos pensando no rebento porquê leitor.
São histórias enfeitadas de mel e muita perdão: o jovem que esconde da namorada que é fissurado em futebol para posar de intelectual blasé; o repórter que perde o único livro, sobre pescaria, que o pai recomendou a ele em toda a sua vida; o garoto que desiste de uma viagem para Novidade York, num rompante contra a família, e constrói no seu quarto uma metrópole feita de pilhas de romances.
Ainda que inclua as agruras de noites mal dormidas, é um livro tomado pela calma e pela leveza, um contraste com a leva de obras intensas sobre a maternidade real que tomam o mercado brasílio —incluindo “Linea Nigra”, que foi escrito pela companheira de Zambra, Jazmina Barrera, sobre o mesmíssimo protagonista de “Literatura Infantil”.
Tornar-se mãe e tornar-se pai são acontecimentos muito distintos, segundo o responsável. “É uma sensação muito estranha e masculina essa de que uma das mudanças mais importantes da sua vida está acontecendo no corpo de outra pessoa.”
“Quando esperávamos a chegada de Silvestre, eu queria ter lido muito mais sobre a experiência de ser pai e não encontrei. Só em amigos. Em livros, o que você encontra são conselhos. E chega um momento em que você não quer mais ouvir imperativos.”
A literatura clássica não parece ter se preocupado tanto com a experiência aterrorizante de ter um bebê engasgado no seu ombro —talvez porque houvesse poucas mães entre seus autores.
Até hoje o leque de obras sobre o objecto soa insuficiente para Zambra, daí a vontade de dar sua taxa porquê alguém que virou pai já com uma bagagem de 42 anos nas costas, sabendo uma ou outra coisa sobre redigir.
Hoje, Silvestre tem seis anos. E ao contrário da fluente que tenta tolher o que crianças devem ou não ler, o repórter diz que o menino pode gozar do que quiser. Até porque o proibido só serve para incitar à leitura. “Quando você é párvulo e dizem que um livro é para adultos, aí é que você quer ler.”
“É importante que haja um adulto ali em exigência de explicar. E inclusive explicar que não entende”, pondera o chileno. “Naturalmente, você quer explicar o mundo ao seu rebento, mas muito rápido chega ao inexplicável. Esse é o treino da paternidade: compartilhar o mistério.”