Diante de uma xícara de expresso num moca de Bolonha, no setentrião da Itália, Anabella López abre o notebook sobre a mesa. “Você quer ver o livro novo?”, pergunta ela. “Acho que é o meu melhor até agora.”
Era abril deste ano. A ilustradora argentina, que mora no Brasil há mais de uma dezena, visitava a Europa para participar da Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha, o principal evento global da literatura infantojuvenil, e exibia pela primeira vez “O Varão, o Rio e a Caixa”. Inédita àquela profundeza, a obra acaba de ser lançada pela editora PeraBook.
Na tela do computador, logo apareceram as cores fortes e chapadas que caracterizam as colagens de Anabella, além de formas que fazem referência a uma estética latino-americana e personagens não realistas, mais próximos do teratológico e do animalesco. “Até paladar de livro com cachorrinho e morceguinho, mas não é esse o meu trabalho”, afirma ela. “Acho que tenho um perfil mais filosófico, mais existencial. Prefiro colocar nas histórias questões que doem e que fazem o leitor repensar a vida.”
Essa é justamente a vaga surfada em “O Varão, o Rio e a Caixa”. Uma breve sinopse diz que, um belo dia, um varão viu um rio. E, desse encontro, nasceu uma paixão. “O varão ficou seduzido, nunca tinha visto um rio. O rio ficou seduzido, nunca tinha visto um varão”, diz o texto.
Só que esse personagem logo começa a permanecer apreensivo. Passa a ter terror, teme que as águas possam ir embora para sempre, sem aviso. Por isso, decide trancar o rio dentro de uma caixa.
A narrativa se equilibra a todo momento na relação entre paixão, liberdade e um sentimento possessivo, com uma leitura que está muito ligada ao universo dos relacionamentos, é simples, mas que abre margem também para interpretações mais ligadas à natureza e ao envolvente. Tudo isso num livro ilustrado, que geralmente é visto porquê restrito para crianças.
“Cá em Bolonha mesmo, tive uma reunião com um editor chinês. Mostrei alguns originais, ele adorou, elogiou. Mas, no término da conversa, perguntou se eu também produzia livros para crianças”, conta Anabella, emendando uma risada. “Ele não via meu trabalho porquê um pouco para esse público.”
Segundo a ilustradora, sua proposta é mais ampla. Nos livros, ela diz tentar dialogar ao mesmo tempo com os mais novos e com os adultos. “Nem sempre é fácil. Muitas editoras querem que você publique histórias que se adequem ao mercado, às escolas, aos editais do governo, pensando mais no mercantil do que no artístico”, diz. “Mas isso é impossível para quem é artista.”
“Se eu esperar que o mercado me inspire uma teoria, ela vai ser horrorosa. Porque o mercado é padrão. Mas a arte é o inverso. A arte revoluciona, desmonta, provoca.”
Um exemplo é o próprio livro novo da autora, que mora atualmente na praia pernambucana de Porto de Galinhas. A teoria surgiu a partir de uma proposta do jornalista italiano Gianni Rodari, chamada de binômio fantástico. Na definição do próprio Rodari, “no binômio fantástico, as palavras não estão presas a seu significado cotidiano, mas libertas da prisão verbal da qual fazem segmento”.
Anabella, porém, decidiu inventar um trinômio. Nele, varão, rio e caixa vão muito além da concretude do léxico e funcionam porquê metáforas complexas. “Coloquei nesses elementos um pouco do que eu estava passando na estação”, afirma. “Todo mundo, adulto ou moçoilo, já foi rio e também já foi caixa.”
Até porque o rio não surge na história somente porquê símbolo de liberdade e fluidez. Ele também tem seus lados de incerteza e tortuosidade.
“A forma que um rio corre pela terreno não é perfeita nem simétrica. É quebrada”, fala a ilustradora. Para levar essa confusão ao nível da imagem e do visual, a autora, que é destra, ilustrou o curso d’chuva sempre com a mão esquerda. “O único jeito de tentar fazer um rio de verdade é descontrolando a mão”, prossegue, acrescentando que esse era um manobra muito usado entre os surrealistas.
Anabella apresenta a obra e fala sobre o seu trabalho na Flip, que tem início na quarta-feira, dia 9, em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro. Depois vai a São Paulo, onde participa de uma série de encontros de 14 a 22 de outubro.
“Mesmo morando em Porto de Galinhas, sempre tento participar de eventos e fazer lançamentos em outras cidades”, conta. “Já me sinto metade argentina e metade brasileira.”
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