O promanação de Victoria é um milagre. Todos os indígenas vivos posteriormente os anos 1900 são um milagre, explica um dos narradores do romance “Estrelas Errantes”, que acompanha diferentes gerações de uma família cheyenne nos Estados Unidos, sob jacente prenúncio de extermínio.
Esse é o segundo livro do redactor americano de origem indígena Tommy Orange, de 43 anos. Falando em estrelas, a dele é ascendente. Seu romance de estreia, “Lá Não Existe Lá”, foi finalista do prêmio Pulitzer em 2019, consagrando-o porquê uma das novas promessas da literatura em língua inglesa.
O romance “Estrelas Errantes”, de 2024, é ao mesmo tempo um prelúdio e uma prolongamento de “Lá Não Existe Lá”. Conta o que aconteceu com a família dos protagonistas antes e depois do livro, expandindo seu universo. É um texto independente, porém, que pode ser lido em separado.
À Folha, Orange conta que teve a teoria quando, fuçando nos arquivos, se deparou com a história do massacre e aprisionamento da tribo cheyenne, de que ele e seus personagens fictícios fazem segmento. “Era um pedaço da história sobre o qual eu não tinha nem teoria.”
A invenção serviu para contextualizar sua ficção em uma sequência mais longa de extermínios. A aniquilação indígena não é só física, mas também simbólica –enfim, ele próprio não conhecia o incidente, o que demonstra o quanto a história de seu povo já foi apagada da memória social.
O livro acompanha, por exemplo, um personagem cheyenne que é forçado a estudar em uma espécie de calabouço voltada a assimilar pessoas indígenas à sociedade mais ampla dos EUA. “A função da assimilação”, afirma Orange, “era dissolver as tribos, o que matou as suas histórias”.
O Estado e as instituições de ensino partiam do princípio de que os indígenas não tinham zero a contribuir para a cultura. “A teoria de que eram bárbaros servia para degradá-los”, diz. Seus valores foram reprimidos, com o que suas experiências perderam lastro.
Daí o milagre do promanação da pequena Victoria, qualquer tempo depois —uma menino indígena contra todos os prognósticos. Orange explora, por meio dessas diferentes gerações, os desafios de manter uma cultura em um sistema que tenta apagá-la, por considerá-la subalterno e obsoleta.
Orange usa diversos narradores e pontos de vista no romance, no que é, de certa maneira, também um meneio aos valores indígenas, que privilegiam o coletivo em detrimento do individual. “Essa perspectiva comunal, oposta à glorificação individual, é segmento da nossa cultura nativa”, afirma. Seu livro não tem heróis.
O texto absorve, também, maneiras de ser. Orange nunca é explícito e evita os lugares-comuns. Mas o leitor cauteloso percebe, por exemplo, que seus personagens usam os lábios, e não os dedos, para indicar —o que faz segmento de um gestuário indígena. Usam metáforas também desse universo.
Orange tem mestrado em artes com enfoque em culturas indígenas, de onde extrai, sem errar a mão, essas referências. “A maneira mais interessante de dar camadas a um texto é produzir diferentes pontos de aproximação”, diz. Há o enredo na superfície e, aquém dele, toda uma textura.
Também sob a superfície está a teoria de que nós somos o resultado das decisões tomadas por nossos ascendentes, que nos afetam mesmo quando não os conhecemos. É porquê um personagem diz, na metade do romance: famílias são peças de dominó caindo umas em cima das outras.
Orange conta que criou essa imagem a partir de um sonho que teve quando era mais jovem, que muito o impressionou. Uma outra metáfora com que sonhou foi a de um garoto encontrando uma aranha em sua perna. O onírico é um outro elemento de sua cultura que o redactor incorporou.
Não são ideias unicamente abstratas. Dá o exemplo de seu pai, nascido de um relacionamento extraconjugal. Sua tribo o considerava unicamente meio cheyenne, o que fez de Orange um quarto cheyenne, e seu rebento, um oitavo. É generalidade, nos EUA, indígenas e autoridades calcularem as origens assim para estabelecer, por exemplo, o aproximação a políticas públicas.
Até alguns anos detrás, segundo o redactor, sua tribo não aceitava quem não fosse ao menos um quarto cheyenne. “A maneira com que meu pai nasceu quase significou que meu rebento não faria segmento da nossa tribo, o que afetaria sua identidade e a identidade dos seus filhos”, Orange afirma. Peças de dominó.
A teoria do milagre de ser indígena é, na obra, uma forma de resistência. Um modo, em outras palavras, de contrariar as políticas públicas e a opinião coletiva de que as pessoas indígenas não fazem segmento da sociedade americana. É alguma coisa pelo qual os protagonistas de Orange lutam.
Há, nesse meio tempo, uma figura destoante na constelação das “Estrelas Errantes”. Uma das epígrafes do livro é da brasileira Clarice Lispector (“é em mim que tenho de produzir esse alguém que entenderá”).
Orange conta que “A Hora da Estrela” é um de seus livros favoritos. “O luz de sua voz e sua disposição em ser selvagem me estontearam.”