Quando falamos de bicho, o universo dos livros para crianças às vezes parece uma fazendinha só com cachorros fofos, gatinhos felpudos, oncinhas-pintadas, zebrinhas listradas e coelhinhos peludos. Mas é só a aspecto.
A história da literatura infantojuvenil é formada também por toda uma fauna de animais vistos uma vez que sujos, perigosos, nojentos e marginais pelo tino generalidade. São ratos, porcos, baratas, aranhas e outras espécies que geralmente acabam se mostrando personagens para lá de interessantes, já que são capazes de produzir um dos efeitos literários mais eficazes —a quebra de expectativas.
Finalmente, a gente espera ver um porco sujo e gorduroso de limo, mas o Marquês de Rabicó ostenta um título de nobreza em “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, por exemplo. Não é preciso se estender cá sobre a má reputação das baratas, só que a famosa Carochinha “tem fita no cabelo e moeda na caixinha” pelo menos desde 1894, quando Alberto Figueiredo Pimentel publicou “Contos da Carochinha”, tornando-se quase sinônimo de literatura infantojuvenil no Brasil. A lista das surpresas continua e é quase infinita.
Esses estranhamentos —ou desfamiliarizações, uma vez que alguns preferem invocar— costumam pegar os leitores no contrapé e ser o pulo do gato (ou do rato, se quisermos entrar na galhofa) de muitas histórias. É o caso de dois lançamentos para crianças pequenas que acabam de chegar às livrarias.
O primeiro é “As Aventuras de Vitório”, no qual a ilustradora Veridiana Scarpelli conta a história do porco que dá título ao livro em três partes, sempre com ilustrações multicoloridas e nenhuma vocábulo.
Com todas as patas no nonsense, as narrativas visuais estão recheadas de surpresas. Pode olvidar a teoria do porco imundo ou os clichês ligados a “Os Três Porquinhos”. Vitório é fofo, veste uma camisetinha listrada e participa de aventuras com um misto de coragem, curiosidade e inocência.
Na primeira das histórias, chamada “O Sonho”, ele fica pelado, mergulha num oceano escondido numa poça d’chuva e participa de uma sarau fantasiado de coelho —todos sabemos o significado da sentença “lobo em pele de cordeiro”, mas o que quer proferir um porco em pele de coelho? Em “A Viagem”, o leitão transforma um teco de grama em asas e explora os cantos mais malucos do universo. Já em “O Sorvete”, Vitório sai em procura de um picolé cor-de-rosa, mas confunde a sobremesa com o chapéu de uma raposa, a nave espacial de um ratinho e o sombra de uma turma de sapos.
Tudo é inesperado, criativo, bem-humorado. Scarpelli aproveita ainda para produzir narrativas visuais espelhadas, já que o protagonista sempre começa e acaba cada capítulo do mesmo jeito. Ou quase, pois as cenas têm pequenas diferenças. São essas variações que convidam crianças a recrear de jogo dos sete erros, enquanto adultos param para refletir sobre nossos inícios e fins.
Já o segundo lançamento traz um bicho que gera um pouco mais de tormento. É estranho proferir isso, mas dá vontade de estreitar a protagonista de “A Barata Bailarina”, novo livro de Rosinha —e não é estreitar até esmigalhar e matar, muito pelo contrário.
A autora secção da conhecida cantiga popular sobre a barata proferir que tem sete saias de tule. Todo mundo sabe que é pataratice da barata e que ela tem uma só. Até aí tudo muito, mas por que ela conta essa lorota?
A obra vai brincando com a música famosa, com a personagem acrescentando que tem sapatilhas de cetim, meia-calça cor-de-rosa, o cabelo penteado e outras coisas que não fazem secção da versão original. Enquanto isso, as ilustrações exibem o inseto se vestindo e se preparando com todo o desvelo.
É uma pena que o título já entregue o grande sonho da barata logo de rostro, que é ser bailarina. Talvez o estranhamento e a surpresa fossem maiores se só descobríssemos o seu libido no termo, uma vez que uma revelação. Mas, de qualquer forma, o inseto dançarino esbanja perdão e leveza do início à última página.
E, de quebra, faz um complemento a outra música, “Peneira da Bailarina”, de Chico Buarque e Edu Lobo. A letra da dupla diz que todo mundo tem comichão, piolho, remela, piriri e pentelho, por exemplo, mas só a bailarina não tem. No livro, a barata bailarina tem pé de capim, perna espinhosa e casca dura —e tudo muito, porque ela dança mesmo assim.
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