A história de Sônia Maria de Jesus, de 50 anos – que foi resgatada em uma operação contra o trabalho análoga à escravidão da mansão de um desembargador e que depois retornou à residência dos investigados – abre um precedente perigoso para o combate a esse tipo de transgressão, argumentou nesta segunda-feira (6) o coordenador-geral de Fiscalização do Trabalho do Ministério do Trabalho (MTE), André Roston.
“O precedente para as próximas vítimas de trabalho servo é desastroso para a política pública. Em 30 anos, a gente nunca enfrentou uma situação uma vez que essa, de se negar às vítimas de trabalho servo o recta ao resgate. Isso foi recusado agora à Sônia”, afirmou o auditor fiscal, acrescentando que o caso pode fazer com que esse recta ao resgate seja recusado a vítimas de trabalho servo.
André Roston fez o glosa nesta segunda-feira (6) em debate sobre o trabalho servo no envolvente doméstico na Percentagem de Direitos Humanos (CDH) do Senado. A caso da Sônia foi o principal tópico da audiência, que contou com a presença dos irmãos biológicos dela, Marta de Jesus e Marcos José de Jesus.
A mana mais novidade da Sônia, Marta de Jesus, de 34 anos, disse que a mãe delas, Deolina Ana de Jesus, passou a vida inteira procurando pela filha, que foi levada quando tinha 9 anos de idade sem o consentimento da família, em Osasco (SP).
“Essa era a procura manente. Dava o endereço que não existia, e aí nós íamos até o endereço e não tinha ninguém. Dava o telefone que não existia. E assim foi a saga da minha mãe até a morte dela. A minha mãe dizia, eu vou morrer e não vou rever a minha filha. E assim aconteceu”, lamentou Marta. A mãe da Sônia morreu em 2016.
Entenda
O caso da Sônia Maria de Jesus veio à público em junho de 2023, quando ela foi resgatada em uma operação realizada na mansão do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis (SC).
Ele e a esposa, Ana Cristina Gayotto de Borba, são investigados por supostamente terem submetido Sônia à requisito análoga à escravidão por 40 anos. Ambos negam a querela e sustentam que Sônia é uma pessoa da família.
Dois meses depois do resgate, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do ministro Mauro Campbell Marques, determinou que os investigados pudessem reencontrar Sônia. A decisão ainda possibilitou que Sônia regressasse à mansão dos investigados caso assim desejasse, o que de veste aconteceu.
Campbell discordou da desfecho do Ministério Público do Trabalho de que Sônia teria sido submetida a requisito análoga à escravidão. Segundo o relator do caso no STJ, seria “nítido que, pelos últimos 40 anos, a suposta vítima do delito viveu uma vez que se fosse membro da família, não havendo razões, portanto, para se obstar o pleito formulado pela resguardo”.
A Defensoria Pública da União recorreu ao Supremo Tribunal Federalista (STF) para impedir que os investigados reencontrassem Sônia até o final da investigação, argumentando que o encontro viola a norma de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica e permitiria o constrangimento dela pelos supostos agressores.
Citando a decisão do STJ, o ministro do STF André Mendonça negou o pedido da defensoria pública. O habeas curpus recusado ainda precisa ser analisado pela 2ª Turma do STF.
Sem escola e sem saúde
O padroeiro público da União (DPU), William Charley, que atuou no caso da Sônia, esteve presente na Percentagem de Direitos Humanos do Senado. Ele contou que Sônia nunca teve ensino formal, não tinha vida social fora do núcleo familiar dos Borba, e não teve aproximação à saúde.
“Perguntei ao desembargador, por que o senhor não colocou a Sônia na escola? ‘Não, porque ela não aprendia zero. Ela é incapaz de aprender.’ Por que o senhor não levava no posto de saúde? ‘Não, tem um médico, um dos amigos meus, que vem cá de perdão tratar da pessoa’”, revelou o padroeiro.
William afirmou ainda que Sônia faz trabalhos domésticos desde os nove anos de idade e é analfabeta, enquanto os demais filhos da família são profissionais muito sucedidos.
“São pessoas que têm curso superior, graduação, são profissionais liberais e bem-sucedidos. E a Sônia não convivia com a família no que é a segmento boa, só ficava na família na segmento do trabalho doméstico”, acrescentou.
O vice coordenador do Grupo de Trabalho sobre trabalho doméstico do Ministério Público do Trabalho (MTP), Thiago Lopes de Castro, afirmou que o caso da Sônia Maria de Jesus é emblemático para o combate ao trabalho servo no envolvente doméstico.
“Ela retornou para essa família sem ter tido o devido sustento, o devido momento para a sua ressocialização. E essa decisão é inédita no Judiciário Brasílico, cabe realçar, e culpa perplexidade. Desculpa perplexidade porque é o próprio Poder Judiciário institucionalizando uma cultura escravagista”, destacou.
Segundo o procurador, Sônia dormia em um quarto fora da mansão principal, trabalhava de domingo a domingo, sem férias e sem receber salário.
RG aos 45 anos
O auditor fiscal do MTE, André Roston, também argumentou que a investigação demonstrou que Sônia não era da família, uma vez que as fotos nas redes sociais da família não a incluíam.
“Portanto essa percepção, ou esse tratamento oferecido uma vez que trabalhador e não uma vez que integrante da família, ela saía das próprias fotos, dos registros e das marcações e discursos da própria família”, destacou.
Roston acrescentou que Sônia não existia formalmente até os 45 anos de idade, quando teve seu primeiro Registro Universal (GR) expedido, em 2019. “Que pai ou mãe deixa seu fruto não existindo formalmente até os 45 anos de idade?”, questionou.
A mana de Sônia, Marta de Jesus, também questionou a versão da resguardo dos acusados, citando que deixaram Sônia analfabeta. “A minha mãe negra, periférica, analfabeta, não tem um fruto ignorante. Nenhum dos meus irmãos é ignorante”, destacou, acrescentando que a notícia de que Sônia estaria sendo submetida a condições semelhantes à escravidão causou indignação em toda família.
“A Sônia não teve recta à socialização. A Sônia não teve recta a se falar. A Sônia não teve recta a tentar a vida dela. A Sônia não casou, não teve filhos. Uma vez que assim? Nós tivemos filhos, nós temos filhos, nós temos família”, afirmou.