Cazuza Ressurge Mais Poeta Que Roqueiro Em Livro 07/09/2024

Cazuza ressurge mais poeta que roqueiro em livro – 07/09/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

“Morro de pânico de solidão/ a que certos intelectuais precisam se entregar/ para produzir alguma coisa mais ou menos profunda/ Permanecer um dia sozinho me leva à loucura/ convívio social também/ Ao mesmo tempo eu temo a loucura e/ vou vivendo assim/ feito uma globo entre duas raquetes de/ frescobol”.

Esses versos confessionais, escritos por Cazuza em 1989, ao mesmo tempo contrastam e confirmam o clima da morada de sua família em Petrópolis, no Rio de Janeiro, descrito por Lucinha Araújo, mãe do cantor. O artista, morto há 34 anos, chamava o lugar de Cineac Trianon, nome que escolheu para dar título ao poema —inédito em sua integralidade até agora.

“Naquela idade, era muita boemia”, diz Lucinha. “O João [Araújo, pai do cantor e criador da gravadora Som Livre] trabalhava com música, e a gente recebia muitos artistas na morada. Ninguém dormia, ficava todo mundo cantando e tocando violão e o Cazuza vendo tudo isso com uns 12 ou 13 anos.”

Em “Cineac Trianon”, um dos 27 poemas inéditos de “Meu Lance é Trova”, livro lançado pela WMF Martins Fontes com toda crestomatia de Cazuza, o artista medita sobre questões existenciais —felicidade e tristeza, loucura e sanidade, e a escrita porquê veículo de tudo isso. É uma das obras reveladas agora que expandem o entendimento do ex-vocalista do Barão Vermelho porquê poeta, para além de grande letrista e cantor.

“O que mais me chamou a atenção são esses poemas mais longos, caso do ‘Cineac Trianon’, que é enorme, tem umas sete páginas”, diz Ramon Nunes Mello, que organizou esse e outro livro lançado agora pela mesma editora, “Protegi Teu Nome por Paixão”, com mais 700 fotografias de Cazuza. “É uma outra abordagem, que muita gente não conhece.”

Dessa mesma linhagem é “Work in Progress”, texto um tanto lisérgico em que Cazuza tenta entender Jimi Hendrix e o rock —ou “a raiva amplificada em não sei quantos milénio watts”—, sua própria cidade e existência, em que despeja sonhos e medos no papel sem muita preocupação formal. Porquê diz num verso, “que mal em um bêbado brincando de fabricar palavras próprias?”

“Dá para ver porquê ele estava preocupado em testar a linguagem poética”, diz Nunes Mello. “E ao mesmo tempo tem temáticas ali que se repetem em outros poemas. Portanto, você vê que ele vai pegando isso e exercitando de outro jeito quando começa a ortografar de uma maneira mais músico com seus parceiros.”

A verso na vida de Cazuza, de certa forma, precede e sucede a música. Ele escrevia ainda crianças poemas para mostrar à avó materna, Alice, deixou papéis espalhados pela morada que foram guardados por Lucinha ao longo dos anos, e nos últimos dias de vida, levou uma máquina de ortografar ao hospital, quando estava tratando o HIV.

Secção dos inéditos revelados agora estavam com seu parceiro Ezequiel Neves, morto em 2010. Mas não só —enquanto organizavam o livro de fotos, Nunes Mello e Lucinha receberam escritos que Cazuza foi deixando com amigos e parceiros.

É o caso de “[Ao Serginho]”, texto romântico escrito num caderno escolar de Sergio Dias Maciel, namorado de Cazuza entre 1981 e 1986. Também de “Pobreza”, que o compositor fez em 1980 para Léo Jaime que, sem verba, ia à morada de Cazuza almoçar, e era chamado de “pobreza” pelo companheiro.

“Léo foi o grande inventor do Cazuza”, diz Lucinha. “Não sabia nem que ele cantava nem que tocava violão. O Léo que falou ‘você canta muito muito’, mas Cazuza dizia ‘não posso, meu pai é o maior nome da indústria fonográfica brasileira, vão pensar o que de mim?’ Sempre teve esse receio. Léo foi convidado para integrar o Barão Vermelho, disse que não iria, mas indicou o companheiro.”

Lucinha conta que Cazuza dizia ter vergonha de ter o pai rico, mas diz que essa exigência privilegiada não caiu do firmamento. “O pai dele era divulgador de discos —botava o disco debaixo do braço, pegava o bonde e pedia para tocar nas rádios do núcleo. A gente morava num quarto e sala, aí quando o João fundou a Som Livre, foi sucesso já no primeiro ano.”

Mas, segundo a mãe, Cazuza “nasceu em causa esplêndido” no quesito música popular brasileira. De Elis Regina a Novos Baianos, quase todos os gigantes da MPB frequentavam a morada dos Araújo quando o fruto de Lucinha ainda não tinha despertado sua veia músico.

Antes e durante esse processo de se admitir músico, Cazuza estava escrevendo. Sua obra é, porquê diz o título do poema, um trabalho em progresso. Em “Meu Lance é Trova”, é provável escoltar as versões alternativas de canções famosas. Há três de “Um Dia na Vida” e duas de “Exagerado”, “Ideologia” e “Eu Queria ter Uma Petardo”, por exemplo.

“Quando ele começa a fazer canções, aí é que vira uma coisa mais estruturada”, diz Nunes Mello. “Em ‘Exagerado’, por exemplo, ele corta versos. Em outras versões de músicas, ele recupera alguns versos.”

O livro traz, além dos 27 poemas inéditos, explicações mais completas sobre o contexto de cada um deles. É uma atualização de “Preciso Proferir Que te Senhor”, lançado em 2001, mas também uma expansão do entendimento de Cazuza porquê redactor —o “poeta do rock”, porquê ele ficou sabido, talvez fosse ainda mais poeta do que roqueiro.

Em “Protegi Teu Nome por Paixão”, o livro de fotos, o retrato de Cazuza também vai além da reunião de fotografias do artista, da puerícia aos últimos dias. Traz documentos, recortes de jornal e imagens com parceiros porquê Gilberto Gil —responsável do prefácio do livro.

Há, por exemplo, uma reprodução do caderno em que ele anotou o número do jornalista Pedro Bial, companheiro que fez na puerícia. E também uma sequência de páginas sobre sua relação com os signos e a astromância.

Mas nem a mais nítida das imagens é capaz de revelar tão muito o espírito de Cazuza quanto sua caneta —ou máquina de ortografar— no sigilo do papel. Feroz em cima do palco, descolado sob seus óculos escuros, ele escorria pelas palavras porquê um romântico sofredor, uma psique perdida em procura de qualquer sentido para sua existência.

Em “Meu Lance é Trova”, Cazuza surge paradoxal, à flor da pele, por inteiro. Há referências ao rock e à verso beat, paixões intensas e alucinantes, flertes em bares e nas ruas, libido sexual, seu deboche típico da caretice, mudança de consciência através das drogas, denúncia da hipocrisia à brasileira, a frase do sentimento de uma geração, a vida em perspectiva em seguida o diagnóstico de HIV. Mas, talvez supra de tudo, uma vontade patente de aproveitar sua passagem pela Terreno na máxima potência.

Nas palavras do próprio Cazuza —”A verso é linda porque nela tudo cabe,/ porque não é certa nem errada./ Mesmo eu sendo um anacronismo, me sinto poeta.”

Folha

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