'céleste e proust' retrata amizade de autor com governanta

‘Céleste e Proust’ retrata amizade de autor com governanta – 05/03/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

O galicismo Marcel Proust admitia que não teria sido capaz de redigir sua obra-prima “Em Procura do Tempo Perdido” se não fosse por sua governanta, Céleste Albaret. Foi o trabalho de Céleste —tristonho e invisível— que lhe deu o conforto e a silêncio que necessitava para redigir.

A parceria entre o grande intelectual da viradela do século 19 e sua governanta é uma das mais saborosas da literatura. Foi explorada por biografias, livros de memória e até mesmo um filme. Virou, agora, a graphic novel “Céleste e Proust”, da artista francesa Chloé Cruchaudet.

A HQ, que saiu em duas partes na França, em 2022 e 2023, chega ao Brasil pela editora Nemo em um único volume. É uma boa leitura para quem acompanha as novas traduções de “Em Procura do Tempo Perdido” pela Companhia das Letras ou para quem já leu as versões anteriores.

O livro começa em 1913, com a chegada de Céleste ao apartamento de Proust, em Paris. Seu marido, o motorista Odilon, trabalha para o plumitivo e articula a contratação dela. Proust precisa de alguém para fazer algumas entregas de livros —o primeiro volume de seu romance acabou de trespassar.

A jovem Céleste não é a melhor pessoa para esse trabalho. Não tem experiência na subida sociedade parisiense nem conhece seus intrincados rituais. Mas ela acaba, talvez por seu amadorismo, encantando Proust. Ele portanto sugere que Céleste fique e assuma outras responsabilidades no lar.

São tarefas triviais, porquê servir-lhe moca e croissant. A personalidade de Proust, porém, faz com que esses gestos tão simples se compliquem. O plumitivo é asmático, insone e sensível a barulhos. Proíbe Céleste de mexer nos móveis e nos objetos para que não façam soído ou levantem poeira.

Céleste acaba enredada em uma rotina de pedidos inesperados e instruções meticulosas. Caminha na ponta dos pés, segura a respiração e aguenta as reclamações de um patrão voluntarioso. Um dia, por exemplo, escuta um desaforo porque comprou um tecido rijo demais.

De qualquer jeito, os dois se entendem. Céleste não tem estudos, mas impressiona Proust com sua profunda lucidez e sensibilidade. É impecável em suas tarefas e tem uma evidente devoção pelo sensível plumitivo. Vira noites ajudando-lhe a organizar suas anotações e revisões. Protege também a porta de seu quarto, não deixando que outros o distraiam.

A parceria infelizmente dura pouco. Proust morre em 1922. Céleste e Odilon abrem em seguida um pequeno hotel em Paris. Só décadas depois a lendária governanta decide recontar sua esperada história no livro de memórias que ela publica em 1973. Morre pouco depois, em 1984.

Cruchaudet se inspirou, em peculiar, nas memórias de Céleste para a sua história em quadrinhos. Não é sua única manadeira, porém. A quadrinista também leu a obra de Proust e suas cartas, além de ter consultado material audiovisual.

O resultado é um retrato solícito da vida de Céleste e de sua intersecção com a de Proust. Cruchaudet não idealiza aquela amizade —marcada por um despenhadeiro social e estruturada por relações desiguais de trabalho— mas tampouco deixa de notar a formosura do encontro dos dois.

Essa sensibilidade aparece quando Cruchaudet desenha Céleste décadas depois da morte de Proust, relembrando-o. Alguém sugere que ela sente falta do luxo do apartamento do plumitivo. Céleste responde que sente falta, na verdade, da delicadeza de Proust e da sua capacidade de trespassar do mundo. “Mormente, quando é um mundo que não nos convém”, diz.

As aquarelas de Cruchaudet exploram essa delicadeza e essa desconexão com o mundo físico. Para isso, usa uma mistura de realismo e fantasia. O leitor adentra a imaginação de Proust e vê porquê a presença de Céleste o inspira —coisas que ela diz, faz, ou mesmo sua possante personalidade. A governanta foi um de seus modelos para a personagem Françoise, uma das mais conhecidas do livro.

Na dedicatória que escreveu na folha de rosto de um de seus volumes, Proust se referiu a Céleste porquê sua “leal amiga” e disse ser incapaz de admitir que eles não tinham se sabido a vida toda. Agradeceu-lhe por movimentar “céus e terreno” no seu trabalho —e também por aturar seu péssimo humor.

Folha

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