Em uma tarde de março, enquanto pendura lençóis, a bela Remédios é jurisdição aos céus. Quando um varão morre, flores amarelas caem sobre a cidade. Não para de chover por anos a fio. Fantasmas circulam entre os vivos. E há ainda o padre que levita ao consumir chocolate.
Em “Século Anos de Solidão”, romance mais famoso de Gabriel García Márquez, o insólito é o pão de cada dia, não só por sua frequência, rotineira, mas pela naturalidade de sua presença na vida dos personagens.
Por isso, Gabo, uma vez que era publicado, não só resistiu a deixar que o livro fosse apropriado para o cinema —arte que ele amava, diga-se. Segundo especialistas em sua vida e obra, a história foi pensada para evadir da linguagem audiovisual, mostrando o alcance da literatura.
Dez anos posteriormente a morte do responsável, o livro vai lucrar uma adaptação pela primeira vez, não em um longa-metragem, mas em uma série, pelas mãos da Netflix. E já há data de estreia: 11 de dezembro.
Três dos nomes envolvidos no projeto estão de visitante ao Brasil: Francisco Ramos, vice-presidente de teor da plataforma para a América Latina, e as roteiristas Natalia Santa e Maria Camila Brugés. Os três falam sobre os bastidores da série no sábado (12), às 16h, na Morada da Cultura de Paraty, uma vez que secção da programação da Flip+.
“Século Anos de Solidão” será a primeira de uma novidade leva de lançamentos da Netflix inspirados em clássicos latino-americanos, numa lista que inclui ainda “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo —inspirador de Gabo—, e a HQ argentina “El Eternauta”.
Tudo faz secção de uma tentativa da plataforma de se posicionar uma vez que uma peça entre a literatura, o cinema e a TV, dentro da estratégia maior de investir em teor lugar.
Uma vez que conseguiram convencer os herdeiros de García Márquez a topar uma empreitada dessas? A família tinha alguns pedidos, conta Francisco Ramos.
A primeira peroração é que precisaria ser em espanhol. “Havia a percepção de que seria uma história difícil de racontar em inglês. E nós não o faríamos”, diz Ramos.
A segunda questão era a estrutura narrativa. Logo concluíram que um filme não daria conta de transpor o romance para as telas. “Não teria uma vez que ser um filme nem que tivesse três horas”, afirma Ramos.
E a terceira questão é que a série fosse filmada na Colômbia, para que as imagens pudessem remeter não só ao país onde Gabo nasceu, mas a Aracataca, sua cidade natal.
Obviamente, essas três decisões não tiram do caminho as dificuldades que é transpor uma obra uma vez que “Século Anos de Solidão” para as telas. E tudo começa no roteiro. Embora o romance seja meta de devoção apaixonada, há leitores que acham difícil embarcar no livro no primeiro momento.
O principal travanca da leitura costuma ser a circularidade da narrativa. Os personagens da família Buendía, que está no núcleo da trama, por exemplo, costumam ter nomes parecidos ou iguais —mas às vezes suas personalidades são opostas.
Há não só acontecimentos que se repetem, mas alguns que se espelham, sendo um a imagem inversa do outro. “Uma das necessidades da adaptação era deixar mais fácil a compreensão para as pessoas. Logo, tentamos colocar tudo em ordem linear e cronológica”, diz Natalia Santa. “Analisamos os temas do romance e discutimos quais achávamos os mais importantes.”
“Um dos desafios é saber o que pode ser traduzido para o audiovisual e o que não pode, porque não podemos racontar tudo”, completa Maria Camila Brugés.
Para as roteiristas, também não ajuda o indumento de ser um romance de poucos diálogos. Elas até reproduziram os que foram possíveis, mas precisaram encontrar a voz de cada personagem para fabricar as falas.
Ou por outra, a série traz pelo menos uma mudança em relação ao original: o narrador. Enquanto no livro a saga dos Buendía é contada pelo cigano Melquíades, na série quem narra a história é o último integrante da família, Aureliano.
“Mas ele não sabe que é o último. Ele descobre isso conforme a história se desenrola”, afirma Francisco Ramos, acrescentando que os criadores da série chegaram a soluções narrativas para facilitar a compreensão do público conforme novos personagens vão tomando a história.
O executivo também antecipa que o testemunha pode esperar muitos efeitos práticos na série, mais do que efeitos computadorizados. “É muito artesanal. Há efeitos digitais, mas a maior secção fizemos no set. Ficou muito bonito. Uma vez que a série, mormente a primeira secção, se passa entre 1850 e 1906, os efeitos muito sofisticados [não caberiam tão bem]”, diz.
Todos os envolvidos sabem dos riscos que se corre ao apropriar um clássico desses. Finalmente, o que vão levar à tela não vai ser comparado exclusivamente ao original. Vai competir com o que está na imaginação sem limites de cada leitor.
“Há fãs de uma obra literária que esperam ver uma revelação visual da própria subjetividade”, diz Brugés. “Nosso trabalho é um ponto de vista, um esforço coletivo de interpretar e apropriar ‘Século Anos de Solidão’. Mas feito com o intuito de ser muito leal ao romance.”