Macondo. O fabuloso talvez reste mais sólido na memória com o passar dos anos: peixinhos de ouro, mariposas que visitam a vivenda, uma chuva de flores amarelas. Quem leu “Século Anos de Solidão” há muito tempo talvez tenha na memorial pequenos detalhes assim —fofos, não seria injusto expressar.
Mas essas imagens não fazem jus ao romance mais famoso de Gabriel García Márquez. “Século Anos de Solidão” logo revela-se também uma fábula de decadência, maldição familiar, pecados, culpas ancestrais, fatalismo e desfechos trágicos.
Por isso, num tempo em que adaptações literárias para as telas costumam sumir com elementos controversos das obras, é interessante que a aguardada série “Século Anos de Solidão”, que estreia na Netflix nesta quarta-feira (11), não se esquive desses pontos —pelo menos dos principais.
O incesto entre os personagens, por exemplo, está fartamente retratado, porquê um perversão original que retorna à vivenda dos Buendía, muitas vezes antecipando mortes terríveis. Basta lembrar que José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, patriarca e matriarca que fundam a cidade fictícia Macondo, são primos —daí o pavor que têm de gerar lagartos porquê filhos.
Há ainda histórias porquê a de meio-irmãos que se casam ou a de Aureliano, que pede em enlace Remédios, moçoila que ainda brinca de boneca. Os pais dela se horrorizam, mas dão sinal virente, pedem só para esperar um pouco.
“Não podemos mudar o comportamento dos personagens porque eles nos deixam desconfortáveis”, diz o prateado Alex Garcia López, um dos diretores da série.
“Seria mortal olhar a obra sob o prisma da correção política”, acrescenta a colombiana Laura Mora, também diretora. “O livro fala de relações quase que de uma tragédia grega, de símbolos trágicos da repetição. Tirar esses elementos seria tirar o coração da obra.”
Há um tanto de bíblico e trágico já no primórdio da história. Depois do enlace de José Arcadio e Úrsula, o rapaz acaba matando um varão em um duelo, e vai ser assombrado não só pela culpa, mas pelo próprio fantasma do morto. Depois do duplo perversão —o incesto e o homicídio—, os dois deixam a cidade com companheiros, em um êxodo que vai levar à instalação de Macondo.
Os temas de decadência familiar chegam à obra de García Márquez em partes pela influência do jornalista americano William Faulkner, que ele admirava. Mas Gabo pega esses elementos e os alia a uma linguagem lírica e a um siso de humor privado, de modo que um vento de força vital sopra sobre o trágico.
A série da Netflix consegue transpor para a tela essa atmosfera, mesmo tendo que escolher o que incluir e o deixar de fora. E boa secção disso se deve à construção visual do universo do romance, não só na geração da Macondo cenográfica.
Um exemplo são os elementos fantásticos em cena. Em Macondo, o mágico é terreno, não espanta ninguém. “São propriedades da material, não é zero inimaginável”, diz José Arcadio numa cena em que um princípio flutua.
Para reproduzir essa naturalidade, o fantástico foi construído em cena, de forma quase artesanal, em vez de ser realizado computador, na pós-produção: um personagem que voa é içado por um cabo, enquanto um fantasma é um ator de músculos e osso.
Não é só para o testemunha que isso tem um ar gracioso. Os efeitos também exercem poder sobre a imaginação dos atores em cena.
“Era muito interessante interagir com o efeito vivo”, recorda Marco Antonio González, que interpreta José Arcadio Buendía jovem. “Havia muitos efeitos que me eram explicados no set de gravação e eu ficava porquê um menino brincando com gelo sedento.”
Mesmo a passagem do tempo é construída muitas vezes somente com movimentos de câmera, em vez de cortes ou efeitos visuais.
“Gabo dizia que tentou redigir essa história muitas vezes, até perceber que precisava contá-la em um tom neutro”, diz Alex García López. “Por isso, quisemos captar essa atmosfera com o uso da câmera e do movimento, não com efeitos especiais.”
Mas o mais complicado não deve ter sido mourejar com o fantástico e sim com um dos personagens mais tinhosos da narrativa: o tempo, que avança, mas se repete, deixando os Buendía aprisionados numa história ancião.
A passagem dos anos traz transformações profundas para a família —e abre um território extenso para os atores criarem. Isso é verdade para todos os personagens, sem exceção, mas três têm uma centralidade maior: José Arcadio, o patriarca; Úrsula, a mãe; e Aureliano, que logo vira o famoso coronel Aureliano Buendía.
O primeiro, por exemplo, é um varão de imaginação prodigiosa que cria Macondo depois de um sonho. Mas vai pouco a pouco mergulhando em um estado irreversível de loucura, dizendo frases desconexas em latim.
“José Arcadio é um personagem que tem o peso dos anos”, diz Diego Vásquez, que interpreta o patriarca. “É um peso da culpa de ter cometido um homicídio e não ter chegado ao lugar onde queria. Pouco a pouco, vai se transformando e alguém alheio ao mundo real.”
Úrsula, interpretada por Marleyde Soto, é a âncora da vivenda, mas que testemunha os descaminhos da família —inclusive o de Aureliano, rapaz pacífico convertido em líder de uma revolução armada que, em notório ponto, mais parece um superintendente de bandoleiros.
“Aureliano é um personagem que permite uma travessia por uma vida enxurrada de ambiguidades”, diz o ator Claudio Cataño, um dos destaques da série, que o interpreta.
O fruto de José Arcadio e Úrsula é o núcleo gravitacional da secção de maior trouxa política da temporada: a violenta guerra entre conservadores e liberais, em que logo não dá mais para saber quem é mocinho e quem é bandido, com o povo porquê vítima dos dois lados.
É uma mensagem política clara, mas que Gabo escreveu com os conflitos do século 20 em mente. Ainda terá espaço junto ao público do século 21?
“Tem uma atualidade profunda em um mundo dividido, em tensão com o conservadorismo”, diz Laura Mora, a diretora. “Mas também é uma memorial de que o ser humano, mesmo aquele envolvido em lutas românticas, pode virar um tirano. Porquê Aureliano Buendía.”
Os temas mais duros dessa história não são muito comuns nas atuais produções de TV. A escolha da produção de facilitar aspectos mais difíceis do romance deve dar uma forcinha —mas seria preciso ler o horizonte nas cartas, porquê em Macondo, para saber porquê o público vai reagir.
O jornalista viajou a invitação da Netflix