Cézanne Protagoniza Livro Sobre Arte, Ciência E Natureza 29/01/2025

Cézanne protagoniza livro sobre arte, ciência e natureza – 29/01/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Um dos grandes nomes da história da pintura, o pós-impressionista, Paul Cézanne sofria com transtornos na visão: os olhos ardiam, a vista embaçava, e as longas horas debaixo do sol para pintar a serra Saint-Victoire tornavam-se um tormento.

É a partir desse incidente verídico que a escritora francesa Anne Sibran constrói “O Primeiro Sonho do Mundo”, lançado em 2022 na França e há poucos meses no Brasil com tradução de Adriana Lisboa.

Imaginando o encontro imaginário entre o pintor e um oftalmologista especializado em remediar cegos de nascença, ela propõe uma invasão romanesca sobre o olhar e o esplendor do mundo, numa costura entre história da arte e da ciência.

Comecemos pela história da arte: estudando biografia e personalidade do pintor de Aix-en-Provence, a escritora recria oriente Cézanne que murmura “não saiba zero, esqueça tudo”, quando está diante do cavalete, numa pedra em meio à mata mediterrânea, com “com o corpo que transpira, com o peso das coisas, sua pobre vida, o cheiro de alho na ponta dos dedos”. A revolução no modo de pintar passava, antes de tudo, pela desaprendizagem.

No que diz reverência à ciência, Sibran adentra estudos e tratados de idade sobre a anatomia ocular para falar do jovem médico que, pretérito o cristalino, “vê finalmente o fundo do olho: uma parede púrpura desdobrada numa estrutura de árvore sobre uma madrugada de primeira manhã do mundo”.

Ao receber o pintor para um tratamento de vários dias em seu consultório, começa uma relação marcada pela curiosidade e pasmo mútuas, com conversas acompanhadas por bolinhos e fumo de cachimbo.

“Esse romance acabou juntando três coisas: meu paixão profundo por Cézanne, o contexto histórico da industrialização na França e a corrida do ouro na Califórnia”, diz Sibran à Folha.

Sem dar muito spoiler, podemos expor que a Califórnia surge na figura de Kitsidano, jovem indígena de etnia Pomo e terceira personagem do enredo. Na trama, sua figura encarna uma espécie de consciência profunda da natureza, com elementos xamânicos e animistas que se articulam com as visões do médico e do artista.

“Eles representam partes diferentes de nós mesmos, de nossa procura por aquilo que existe de genuíno e por um ímpeto diante do mundo”, sintetiza a escritora, falando por telefone de uma colmado no Massivo Mediano, uma das regiões menos povoadas da França.

Apaixonada por etnologia desde a juventude (“fui completamente atravessada pela leitura do ‘Pensamento Selvagem’ de Lévi-Strauss”), Sibran estudou quechua e viveu por anos no Equador, onde até hoje passa segmento do ano trabalhando em projetos de instrução e conscientização ambiental.

“‘O Primeiro Sonho’ foi escrito quase inteiro na Amazônia [equatoriana]. Foi justamente ao presenciar o impacto do desmatamento e da devastação que decidi me aprofundar no livro”, lembra, ressaltando o veste de que, numa idade de plena expansão do capitalismo industrial, Cézanne tinha todas as manhãs um encontro com a serra e, segundo relatos, tecia longas conversas com as árvores e com as pedras.

Com uma curso que inclui outros romances —uma vez que “Je Suis la Bête” ou “Enfance d’un Chaman”, nenhum deles publicado no Brasil—, histórias em quadrinhos, literatura infantojuvenil e ficções radiofônicas para a France Culture, Sibran se interessa principalmente pelos sons que mapeiam os lugares por onde passa.

“Tive a chance de trabalhar com o [artista plástico dinamarquês] Knud Victor, um dos grandes mestres da arte sonora. Aos poucos, comecei a andejar com o gravador e registrar as paisagens por meio dos sons e pequenos ruídos que produziam.”

Essa teoria de que os lugares falam —e precisam ser ouvidos— permeia todo o romance, finalmente “uma vez que as pessoas, eles estão cheios de palavras, risos de crianças, pegadas de animais, sepulturas”. “Porquê as pessoas, têm gratidão por quem os olha e os vê.”

Para quem se interessa por romances uma vez que “Escute as Feras”, da também francesa Nastassja Martin, a jornada de “O Primeiro Sonho do Mundo” articula questões análogas —e profundamente atuais—, sobre uma cultura que parece se distanciar a passos largos de sua natureza precípuo

“Não suspeitamos até que ponto o mundo já sufocava, na idade, com aquilo que o asfixia hoje. Porque há, no fundo, uma grande violência em separar o varão dessa terreno viva, onde ele se infunde desde sempre e sem a qual não pode realmente se saber, encontrar-se consigo mesmo”, diz um trecho do romance, que para leitores brasileiros pode recordar certas passagens do “Porvir Avito” e outros escritos do líder indígena Ailton Krenak.

Embora o texto às vezes exagere na oposição entre certa natureza idílica e certa cultura corrompida, índios puros e garimpeiros gananciosos, a invasão por Aix-en-Provence, Marselha, Paris, São Francisco, pincéis, instrumentos ópticos, córneas e cristalinos embasam uma leitura que inclui ainda aparições rápidas de personagens célebres da idade uma vez que o plumitivo Émile Zola ou o chamado “père” Tanguy, possessor de uma loja de tintas frequentada pelos impressionistas, que teve sua figura imortalizada por Van Gogh.

Para seu próximo romance, Sibran está criando um enredo em que costura duas florestas nos dois países que atravessam sua vida —a Yasuní, no Equador, e Massane, na França. “Muitas pessoas nunca pisaram numa floresta primária. Se, pela literatura, eu puder transportá-las para dentro desse universo, acho que temos um bom prelúdios.”

Folha

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