Nascente é um livro sobre uma puerícia e uma cidade, mas talvez seja, mais ainda, um livro sobre o chamado século breve, que foi também o século da multiplicação das formas de narrar a vida e da invenção da relação entre a memória involuntária e a literatura.
“Bambino a Roma”, de Chico Buarque, anunciado uma vez que ficção, é literatura filha temporã do século pretérito, prenhe de história e memória, uma idade que já podemos olhar pelo retrovisor.
O livro se abre com a globo de pele de um menino, logo passa aos vômitos no navio e à ancoragem numa Itália ainda cheirando a guerra. E é a esse menino sem grandes grilos que o adulto narrador se cola, revezando com ele a liderança no que conta, de vez em quando refletindo por cima do olhar infantil.
Numa entrevista em que foi perguntado sobre o fruto, logo um jovem compositor, Sérgio Buarque de Holanda dizia que Chico era um rapaz normal, fazendo questão de desmistificar a teoria de que fosse mormente tímido ou de que por trás de todo talento artístico há de ter uma espírito torturada.
Desde a fenda, Chico nos enreda com descrições precisas, céleres, e um tino de humor e leveza —estratégicos e não fúteis— raros na literatura de agora, em que muito se procura o efeito de intensidade dolorosa.
É o mundo das sensações de uma garoto de repente afastada de sua vida brasileira, sem saber muito ao claro se sua proeza seria provisória num país onde o mistério do macróbio se misturava aos sinais de precariedade do longo pós-guerra.
A mansão onde irão viver pertencia a outra família, cujos retratos ainda estavam pendurados nas paredes, o que incita em nós hipóteses de histórias trágicas não contadas. Essa economia de não ir ao fundo de tudo, traduzida na compasso acelerada do texto, define o estilo do livro.
Os desastres do novo velho mundo são captados pelos olhos de uma garoto manipresto e feliz, a quem o mundo material fora generoso e para quem a morte bruta existe uma vez que mera hipótese ou história —daí talvez seu fascínio pelos crimes estampados nos jornais. Que Chico tenha voltado a viver na Itália durante a ditadura civil-militar brasileira é uma informação que nos espreita enquanto lemos.
Porquê em toda memória de puerícia, há uma garoto descobrindo o parque de aventuras do libido. A iniciação ao erotismo é trespassada por nossas costumeiras diferenças de classe e raça. O livro põe em cena uma pré-adolescência à brasileira, com uma naturalidade faceira que irá germinar alguns, irritar outros, mas que representa de modo deliberadamente provocativo e honesto a experiência de muitos “bambinos” da sua mesma classe e geração.
Mas não é só isso, o menino é incessantemente bulinado por um professor, em episódios narrados não em tom de retrocesso ao traumatismo mas com distanciamento irônico que tem efeito libertador. Esse jeito debochado de tratar assuntos medonhos tem um tanto de carioca e revela o juvenil narrador que também há em Chico.
Aquele garoto que se muda para Roma seguro à globo de futebol não entende muito o motivo da drástica mudança da família. Indo um pouco aos fatos, porque reenviam ao literário: a estada dos Buarque de Holanda de 1953 a 1955 na Itália foi por um invitação da Universidade de Roma para que o pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, assumisse naqueles anos a recém-criada cadeira de estudos brasileiros.
A ficção está impregnada pelo encontro do varão vivido com o menino que começa a testar o mundo —os heróis do ciclismo, balas de alcaçuz, cartas de paixão, até uma sala de cinema com teto conversível. Mas, em vez de definir seu livro uma vez que memórias, Chico decidiu —marota ou machadianamente— pela estampa de ficção na toga.
Podemos endossar a proposta e proferir que sim, simples, são ficções de uma puerícia em Roma. Sobretudo porque o narrador vai se descolando de si, se desbragando, rindo do que conta, assim talvez se permitindo mais relaxadamente moldar a material do pretérito.
Talvez o intuito fosse alertar o comprador que o Chico Buarque responsável, embora escrevendo a partir da história familiar, deseja ser lido uma vez que repórter literário, inventivo, dos quais mira não é a pessoa por trás do texto, mas o próprio tecido e tom da narração.
Assim evita ser consumido uma vez que um compositor que escreve sobre si, revelando eventuais segredos de família. Tudo isso é perfeitamente compreensível.
Mas, para reportar um exemplo, lembre a obra de Natalia Ginzburg, que deriva quase inteira de suas memórias familiares e para quem o recordar encetava uma arte em si mesma. Não há zero no memorialismo que faça os autores menos literários ou meros compiladores de causos.
Por mais que leiamos “Bambino a Roma” uma vez que ficção, e ele também é isso, o belo livro de Chico não deixa de ser um relato de experiências, vividas efetivamente ou no ato criativo da escrita. Mas o mais importante: é um texto seguro sem ser artificioso, fluente sem ser afetado, telúrico sem ser vulgar. Uma pequena delícia, que traz por dentro uma foto do menino que nos espia de longe, de outro tempo.
Diria que foi no encontro entre suas memórias de garoto, seu tom troceiro e o prumo do repórter —e leitor— experiente que Chico atingiu um de seus melhores momentos uma vez que narrador. Não há incerteza de que “Bambino a Roma” será exigido uma vez que leitura nas aulas de literatura brasileira da Universidade de Roma, levando-nos a visitar um século que agora vai ficando estranhamente distante.