Poucas vozes na trova brasileira são tão originais e complexas quanto a da carioca Claudia Roquette-Pinto. A autora, que começou na dez de 1980, está sendo redescoberta com o lançamento da crestomatia “A Extração dos Dias: Verso 1984-2005”.
Organizada pelo professor de literatura Gustavo Silveira Ribeiro, da Universidade Federalista de Minas Gerais, é uma reunião de seus cinco primeiros livros: “Os Dias Gagos”, “Saxífraga”, “Zona de Sombra”, “Corola” e “Margem de Manobra”, além de uma seleta de poemas inéditos do início de sua obra.
Com a primeira publicação na dez de 1990, idade marcada pela possante experimentação na forma e na linguagem do poema, Roquette-Pinto não passou despercebida. Ela foi, ao mesmo tempo, vista uma vez que poeta de mão enxurro, que misturava elementos visuais e de caráter existencial, e uma vez que poeta burguesa, que somente pairava sobre o Rio de Janeiro e falava de seu jardim.
“Já fui muito atacada. Quem dizia isso, que eu escrevia sobre um mundo fechado, não estava entendendo zero da minha trova. O jardim é a transa, a vida, a morte, tudo”, diz em entrevista.
Seja nos seus primeiros livros ou no que marcou o início de seu retorno, “Psique Corsária”, finalista dos prêmios Jabuti e Oceanos depois de um hiato de 17 anos sem publicar trova, há uma escrita que transita entre a reparo visual e plástica do mundo, as indagações interiores urgentes e os elementos metalinguísticos.
A sensação, uma vez que no primeiro poema do livro “Corola”, é de espanto, diante de um mundo oriundo deslocado, e vertigem, impulsionada pelos cortes abruptos dos versos: “O dia inteiro perseguindo uma teoria:/ vagalumes tontos contra a teia/ das especulações, e nenhuma/ floração, nem ao menos/ um botão incipiente/ no recorte da janela/ empresta foco ao hipotético jardim”.
Espanto e vertigem estão no cerne da poética de Roquette-Pinto. “O espanto tem a ver com o olhar da menino, mas não um olhar infantil no sentido regredido. É tentar fazer o olho permanecer puro para chupar um tanto. Para redigir um poema, você tem que permanecer imóvel, num estado meditativo, receptiva aos fenômenos. Ao mesmo tempo, é um tanto vertiginoso, porque você está fundando uma coisa que existia, e isso dá um terror danado.”
Para a trova, ser um observador hiper-atento é fundamental, e Roquette-Pinto afinou essa prática com a filosofia budista. “Já foi muito difícil carregar esta quantidade de sensibilidade que tenho, mas agora me reconciliei. Entendi que se eu não tivesse isso eu não seria poeta. É uma início. No meu primeiro retiro, senti um reconhecimento, a sensação de não precisar de mais zero.”
Ela teve uma puerícia “encharcada de livros” pelos pais —desde muito novidade, lia Manuel Bandeira, Olavo Bilac, Florbela Espanca e Shakespeare—, depois uma graduação em tradução literária pela PUC-Rio e leituras de Sylvia Plath, Paul Celan, Giuseppi Ungaretti e Ferreira Gullar.
Roquette-Pinto conta que isso criou nela “uma segunda natureza”, um tanto instintivo relacionado à sonoridade, e muito rigor na construção de seus poemas. São elementos já observados em seu primeiro livro, uma vez que nos versos “catódica essa luminosidade/ estranha o sol repele o sol. virgem/ o tique que quedou meus dias gagos”.
Nas palavras de Silveira Ribeiro, no posfácio da crestomatia, Roquette-Pinto é dona de um “lirismo exigente”, em que a oposição de forças é o grande motor de sua trova. “A flor ambígua e turbulenta —mas ainda assim flor— da trova de Claudia Roquette-Pinto aproxima, sem resolver, o ordinário e o cumeeira, a degradação e a venustidade, o solo e o firmamento”, escreve.
A autora confirma. “Existe muito esse fora e dentro. Alguma coisa acontece fora, mas o corpo quer se apropriar daquilo. E tem esse inquirir-se sobre o que eu estou fazendo cá, essa segmento filosofante está ligada ao meu ímpeto criativo.”
Com sua obra esgotada há anos nas livrarias, Roquette-Pinto está feliz com esse renascimento. “Permanecer tanto tempo sem publicar, ainda que eu estivesse sempre escrevendo, gerou a sensação de que a
manadeira tinha secado. Muitos possíveis leitores ficaram sem saber a minha trova, logo é uma celebração.”
Sobre o cenário atual na literatura, ela também comemora: “Acho lindo ver as mulheres terem muito mais visibilidade, conseguirem ser publicadas. No pretérito, você tinha lá três mulheres que apareciam e o resto morria na praia.”
Roquette-Pinto gosta de olhar para frente e acha triste quando “o artista vira um repetidor de fórmulas, um diluidor de si mesmo”. “O que me dá pujança para continuar escrevendo é o que eu vou desenredar agora. Quando escrevo trova é quando sou mais corajosa”, diz.
“Uma granada é um monte de explosivos num vasilha. O poema é a granada. Você muro uma teoria, com sons e imagens, condensa ao supremo, e, quando o leitor lê, aquilo explode”, finaliza. É justamente essa sensação que temos ao ler a obra da autora.