O que espanta a miséria é a sarau, disse o noticiarista e historiador Luiz Antonio Simas logo na lisura da Sarau Literária Internacional de Paraty, num encontro que evocou o orixá Exu —”o senhor dos caminhos”, nas palavras dele.
Estava oferecido ali o tom do evento deste ano. Os assuntos mais duros sempre estavam lá —a mudança climática, a violência, o racismo, o ódio e a guerra. Mas, em vez de se perder no niilismo, uma nota de esperança sempre prevalecia, já que os convidados fugiram da resignação e apontaram a literatura porquê uma alavanca rumo à salvação.
Um exemplo foi o encontro com Édouard Louis, que cumpriu as altas expectativas que o antecediam porquê noticiarista mais incensado da edição —tanto que foi o único que a curadoria de Ana Lima Cecilio deixou sozinho numa mesa.
Cecilio, aliás, estará de volta na edição de 2025, que acontecerá numa data entre agosto e outubro, a depender da prontidão com que patrocínios forem fechados.
O noticiarista gálico lembrou sua puerícia violenta delineando um planta de fuga para vítimas da dominação. “Os que são menos livres são os que conseguem se libertar”, disse ele. “Fugimos porque não temos escolha. A carência de liberdade se torna a possibilidade de emancipação.”
Diante de uma plateia com a respiração presa, Louis pregou uma transformação não só de si, mas do mundo. E defendeu uma literatura de confronto que contribua para esse projeto.
Mas o caso dele e de Simas foram só dois dos exemplos.
O encontro com Felipe Neto agradou a um público vasto, mobilizando uma turba de crianças ansiosas por uma foto com o influenciador e sem incerteza será um dos momentos mais lembrados da edição. Com retórica bem-humorada e frases de efeito, Neto chegou de helicóptero sob potente esquema de segurança para pregar contra o capitalismo —mas também viu salvamento na leitura.
“É através dela que conseguimos desenvolver novos mundos, ver o mundo através de outros olhos, engranzar pensamentos”, disse.
A sátira da melancolia apareceu em uma mesa tal qual título fazia referência a uma “guerra dos sexos”. A sátira literária Ligia Gonçalves Diniz, que arrancou risos da plateia em diversos momentos, ironizou a carranca dos autores que a formaram porquê leitora —os “hominhos” que a fizeram descobrir que era legítimo ser sério e tristonho. Descobriu anos depois que não.
Em uma das mesas de tom mais grave da programação, a Flip aproximou a guerra conflagrada na Filete de Gaza das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul. O noticiarista palestino Atef Abu Saif discorreu sobre a função da escrita em meio à chance de não chegar vivo ao termo do dia. Mas a mesa deu menos atenção à morte do que ao instinto de vida e à extensão da memória através das palavras.
Mesmo falando de ameaças ambientais, a ativista indígena Txai Suruí —numa mesa desfalcada de última hora pelo cacique Raoni— pediu ao público que não se entregasse à desilusão. “O que eles querem é que a gente acredite no termo do mundo e se entristeça para não conseguir lutar.”
A sentimento é que a curadoria esteve atenta a críticas que a sarau literária recebeu muitas vezes ao longo dos anos. Por exemplo, de que a Flip se mostra desatenta ao noticiário mais palpitante —desta vez, a sarau incluiu até uma mesa extra para falar da recente vaga de queimadas. Ou de que o evento deixou de vincular para nomes mais célebres e atrativos em prol de uma intelectualidade mais desafiadora ao público que não era iniciado.
Isso porque esta edição foi generosa com autores e abordagens populares, surfando em um público cativo, investindo em literatura atingível —e muito acessada— sem deixar de levar esses autores absolutamente a sério —o maior exemplo foi Carla Madeira, autora de “Tudo É Rio” e principal best-seller do Brasil.
Na entrevista coletiva de fechamento, Cecílio não pestanejou em proferir que acharia fantástico ter Paulo Coelho em sua próxima proeza curatorial.
A sensação, comentava-se nas ruas, era de uma “Flip de antigamente”, porque várias cenas pareciam de outros tempos. Édouard Louis, que ficou três dias em Paraty, virou figurinha carimbada nas ruas e em festas da cidade. Foi vorazmente tietado e respondeu com simpatia, tirando selfies e conversando com todos que se aproximavam —e ensaiou dancinhas.
Simples, nem tudo é sarau em um evento desse porte. A mesa da outra estrela internacional da sarau, o premiado senegalês Mohamed Mbougar Sarr, ficou aquém das expectativas —e o noticiarista não teve chance de desenvolver pontos cruciais de sua obra porquê Louis teve.
A escolha da curadoria foi colocá-lo numa mesa com Jeferson Tenório. Tenório é um dos melhores escritores brasileiros em atividade e falou com desenvoltura, mas está próximo ao público brasílio e em breve embarca em novidade turnê de lançamento —o tempo para ouvir Sarr, em globo dividida com ele, já era valioso e acabou reduzido.
O senegalês é responsável de um romance de grande originalidade, “A Memória Mais Recôndita dos Homens”, no qual faz uma enunciação de paixão à literatura, mas também tece contundentes críticas à cena literária, nas quais ninguém é poupado.
A conversa com ele passou ao largo, por exemplo, de seus ataques ao mercado editorial e se perdeu em leituras desnecessárias e digressões longas. Na programação paralela —numa mesa mediada pelo humorista Gregorio Duvivier, por exemplo—, ele mostrou que teria oferecido perceptível sozinho.
Mas o saldo é positivo, depois de edições que sofreram as consequências da pandemia. A Flip dá sinais de que quer continuar a trazer reflexões, emoção e, sobretudo, resgatar um traço fundamental —a sarau.