A escritora russa Elena Malíssova já escrevia romances gays muito antes de ser ameaçada de morte por culpa de um deles. Recém-lançado no Brasil, seu livro “Verão de Lenço Vermelho” tem para ela um sabor agridoce. A obra viralizou na Rússia e a projetou para o mundo, mas à custa de uma perseguição liderada por grupos homofóbicos e políticos conservadores. Quando se deu conta que corria transe de vida, Malíssova fugiu do país, há dois anos.
Em meio ao caos, encontrou escora na amiga ucraniana Katerina Silvánova, que escreveu o romance com ela. Juntas, elas criaram a história do menino Iura, que decide visitar o acampamento onde, na mocidade, viveu o paixão mais importante da sua vida com um garoto chamado Volódia. Enquanto rememora sentimentos, ele procura ali vestígios do macróbio estremecido.
Sua relação impossível começa nos anos 1980, sob o regime da União Soviética, quando o sexo entre homens era proibido por lei e homossexuais eram considerados doentes.
A Rússia pouco mudou, desde logo, a forma uma vez que trata pessoas LBGTQIA+. O país proíbe, desde 2013, a promoção do que considera “relações sexuais não tradicionais” —o que labareda de “propaganda gay”. O pretexto da lei era a proteção de crianças, mas há dois anos ela foi endurecida, estendendo a proibição da tal propaganda também para adultos.
Em paralelo, a Rússia aumentou a increpação contra produtos culturais de temas queer, com livros e filmes sendo cada vez mais cerceados, uma vez que no caso de “Verão de Lenço Vermelho”, precito por lá.
A perseguição começou no Telegram, com grupos de pessoas pedindo que fosse censurado. Os argumentos eram de que a trama suja a história da União Soviética, faz apologia ao fascismo por criticar o comunismo, contém pornografia e incentiva a pedofilia —ainda que os protagonistas tenham somente dois anos de diferença, um com 16 anos e o outro, 18.
“Esses grupos tinham milhares, até milhões de participantes. Usavam nossas fotos, diziam que queríamos transformar seus filhos em gays, escreviam que iriam nos matar”, diz Malíssova à Folha por videoconferência.
Apoiadores da comunidade LGBTQIA+, uma vez que as escritoras, são rejeitados pela sociedade russa e, em alguns casos, punidos com multas e até prisão, a depender de quão grave o governo considera a infração. Desde o termo do ano pretérito, a Rússia considera “movimento internacional LGBTQIA+” uma culpa extremista.
Malíssova e Silvánova arriscam que “Verão de Lenço Vermelho” influenciou o fortalecimento dessas leis, ainda que o livro não tenha sido mencionado especificamente pelo governo. Publicado primeiro de forma independente, a obra escalou em vendas aos poucos, conquistando um público pequeno, até viralizar no TikTok.
A preocupação delas aumentou quando a caça ganhou endosso político, com ameaças de prisão. Malíssova cita o deputado Vitáli Milónov, que atua há oito anos no Legislativo russo, que é espargido por se opor a direitos LGBT e declarar em entrevistas que homossexuais são pessoas nojentas e pervertidas. Ele é do partido Rússia Unida, o mesmo do presidente Vladimir Putin, também declaradamente contra gays.
“Acho absolutamente injusto, desumano e cruel o comportamento homofóbico do governo russo. Meu libido é estribar a comunidade, uma vez que eu posso, pelo menos moralmente, e tentar explicar que são pessoas normais, não monstros”, afirma ela.
Em fevereiro, o governo fez suas duas primeiras condenações relacionadas ao que labareda de “movimento internacional LGBTQIA+”. Uma das pessoas sentenciadas é uma mulher que foi gravada usando brincos de arco-íris num moca; o vídeo chegou às autoridades, que a condenaram a cinco dias de detenção.
Espalham-se pelo país grupos que são declaradamente anti-LGBT, uma vez que o Estado Masculino, que defende o nacionalismo e despreza minorias sociais. Vieram de lá, aliás, a maioria das ameaças contra as autoras.
Quando já estava foragida do país, Malíssova soube que estava sendo acusada de ter trabalhado uma vez que espiã estrangeira, um dos crimes mais graves na Rússia. No ano pretérito ela morou na Alemanha e hoje mantém sigilo sobre onde vive para se proteger.
“O escândalo ajudou a provar para os outros países uma vez que é a Rússia. Quando você diz que lá existe uma ditadura, não acreditam”, diz. “Felizmente, nossa história acabou muito. Nós estamos em segurança, mas quantas outras pessoas estão presas agora? Quantos gays foram mortos?”
Katerina Silvánova, sua parceira, também se sentiu coagida a trespassar da Rússia, onde estava até o pandemônio em torno do livro. Não precisou muito, diz a ucraniana, porque vinha se sentindo ameaçada de viver no país desde a guerra.
A união das duas escritoras vai na contramão do conflito que seus países travam há dez anos, desde a invasão da Crimeia, e que parece longe de terminar.
“Nunca pensei muito sobre o trajo de sermos uma ucraniana e a outra russa porque não me importo com nacionalidade, ainda que na minha cidade exista um sentimento muito patriótico [contra os russos]. A Elena é, antes de tudo, minha amiga”, diz Silvánova.
As duas se conheceram enquanto ainda eram autoras independentes, depois lerem textos uma da outra. Logo houve sintonia, surgiu a teoria para “Verão de Lenço Vermelho”, e decidiram seguir com a obra juntas. Uma escrevia, a outra revisava, e em seguida ambas liam em voz subida para aparar as arestas.
O livro foi publicado na internet, de perdão, e viralizou no Twitter, onde leitores repercutiam a obra com desenhos e comentários. Em meados de 2020, a febre migrou para o TikTok, muito na era em que a rede virou utensílio fundamental para impulsionar a venda de livros. Foi quando atraíram atenção de uma editora e o livro foi parar nas livrarias. O resto é história.